#occupy o comboio

A primeira experiência internacional do coreano Bong Joon-ho é um entretenimento visceralmente moral em tom de ficção científica apocalíptica.

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Era uma questão de tempo até os cineastas da recente nova geração coreana se deixarem seduzir pelo mercado internacional – e se, de Kim Jee-woon a dirigir Arnold Schwarzenegger em O Último Desafio ninguém se lembrará, Bong Joon-ho (ele dos excelentes The Host – A Criatura, 2006, e Mother – Uma Força Única, 2009) evita à tangente esse destino.

Dizemos “à tangente” porque Snowpiercer foi alvo de uma guerra surda com o bully Harvey Weinstein, o ex-patrão da Miramax, que bloqueou a distribuição internacional enquanto Bong não cedesse a alterações no filme, e que o cineasta coreano ganhou sem precisar de fazer concessões.

Ainda bem que Bong ganhou. Snowpiercer, que adapta muito livremente uma BD distópica francesa e foi co-escrito por Kelly Masterson (argumentista do adeus de Sidney Lumet, Antes que o Diabo Saiba que Morreste), é aquilo que Hollywood já há muito não nos consegue dar - um grande filme popular de acção e ficção científica que funciona também como pequeno manual político sobre o potencial revolucionário de uma sociedade em crise. Snowpiercer não se deita fora logo em seguida como o balde das pipocas, a sua distopia perigosamente plausível é um espelho distorcido do presente em que vivemos, onde as disparidades sociais atingem o âmago da dignidade humana e uma acção violenta tem uma consequência moral que não se pode descartar.

Num mundo futuro que a tecnologia e o aquecimento global condenaram a uma apocalíptica idade do gelo, os únicos sobreviventes habitam um comboio em movimento perpétuo onde a sociedade está rigidamente dividida de acordo com papéis pré-determinados, e as “carruagens de trás”, cansados de serem tratados como carne para canhão, decidem revoltar-se e assumir o controlo. Nestes dias do movimento #occupy, das primaveras árabes e das revoluções nas redes sociais,
Snowpiercer é uma espécie de #occupy-o-comboio que escapa à dimensão puramente didáctica que podia ter porque Bong Joon-ho o trata como entretenimento visceral e clássico, cujo aparente maniqueísmo é gradualmente matizado até ao final que baralha os dados do que ficou para trás. Esse baralhar os dados é uma das marcas centrais do cinema do coreano – uma insistência em olhar para lá da evidência, em não ficar apenas pela superfície, sempre ancorada nas personagens e no seu perfil (e, mais uma vez, é de família que aqui se fala, por portas travessas). E essa atenção às personagens atribui a cada evento, a cada incidente da viagem em direcção à locomotiva, um questionamento moral, sobre os limites da dignidade humana, onde a violência (muito “coreana”) que jorra se torna essencial para a compreensão.É verdade que, comparado com o que Bong fez antes, há um lado mais formatado em
Snowpiercer, pensado desde o princípio com vista ao mercado internacional, mas a boa notícia é que é o cineasta não se deixou “tolher” nem perdeu de vista a dimensão imprevisível do seu cinema. Não se espere aqui o choque da descoberta, apenas um talento em “compasso de espera” mas em absoluto controle daquilo que está a fazer. Hoje em dia, já é muito.

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