Não era só música para adolescentes, era o som do mundo a mudar

Na França dos anos 1960, a música yé-yé foi símbolo de mudança. Apresentou uma geração que não queria ser, pensar ou vestir como os pais.

Foto

É um livro sobre o yé-yé, música que identificamos com França, com a década de 1960, com o Tous les garçons et les filles de Françoise Hardy ou com o Laisse tomber les filles de France Gall. É um livro, de edição americana (Feral House), intitulado Yé-Yé Girls of ‘60s French Pop, em que o jornalista francês Jean-Emmanuel Deluxe apresenta de forma informada e com entusiasmo todas as suas figuras, enquanto nos introduz habilmente, em texto e imagem, a todo o contexto (social, cultural, mediático).

O yé-yé, manifestação francesa inspirada nos novos ventos, eléctricos e libertários, soprados dos Estados Unidos (Elvis Presley!, o rock’n’roll!), e de Inglaterra (os Beatles!, os Rolling Stones!), não demorou a saltar fronteiras: Françoise Hardy tornou-se uma estrela global admirada e desejada por Bob Dylan, David Bowie ou Brian Jones; Sylvie Vartan seguida e vista em concerto no Portugal da década de 1960.

A genial e colorida ingenuidade daquela música e das suas cantoras, de resto, não deixou de se mostrar inspiradora, ressurgindo ao longo dos tempos. Vemo-la em alguém como a americana April March, que moldou toda a sua carreira, iniciada nos anos 1990, nas cantoras yé-yé francesas. Ouvimo-la em À Prova de Morte, de Quentin Tarantino, cuja banda sonora incluía em destaque Chick habit, versão que April March faz para Laisse tomber les filles, canção composta por Serge Gainsbourg e interpretada por France Gall. E deparámo-nos com ela mais recentemente em Mad Men, num episódio em que Megan, mulher do protagonista Don Draper, canta Zou bisou bisou, editada em 1960 por Gillian Hills, na festa de aniversário do marido.

Não será por acaso, portanto, que, apesar de o título do livro nos remeter para a década de 1960, Jean-Emmanuel Deluxe tenha decidido ir mais além. Nas suas páginas encontramos músicos que são descendentes ou que foram inspirados pela geração yé-yé. Nomes como Les Calamités, Mikado, a supracitada April March ou Bertrand Burgalat. E Lio, a cantora que no final dos anos 1970, vinda da Bélgica, tomaria de assalto os tops e a consciência pop francófona. Ouvimo-la e vemo-la, no YouTube, em Le banana split (1979) ou Les amoureux solitaires (1980). São duas canções cuja base synth-pop, bem adequada ao seu tempo, estabelece ligação directa com a simplicidade cativante do yé-yé original. Lio tinha 17 anos quando as cantou. Diziam-lhe muito as cantoras do yé-yé (e notava-se). Foi, de resto, uma das suas descendentes mais célebres.

Depois cresceu, libertou-se da prisão que pode ser uma imagem pop de sucesso, mudou a sua música e tornou-se actriz filmada por Claude Lelouch, Chantal Akerman, Catherine Breillat e muitos mais. É, ainda hoje, quando prepara um álbum de versões de Dorival Caymmi e vai pensando noutro, mais à frente, de homenagem a George Brassens, uma celebridade. Falámos com Lio e ela manifestou-nos um desejo. Outro disco: “Não tenho voz nenhuma para fado, mas vou tentar encontrar a minha maneira de o cantar. Há um guitarrista que adoro, o [António] Chainho. A guitarra dele é como uma mulher, é incrível. Há mais de dez anos que penso em fazer qualquer coisa com ele”, confessa.

Lio é o seu nome artístico (retirou-o de uma das personagens da banda desenhada Barbarella, do francês Jean-Claude Forest). Na certidão de nascimento, lemos Wanda Maria Ribeiro Furtado Tavares de Vasconcelos. Nasceu em Portugal e chegou aos seis anos a Bruxelas. Quando contactámos Jean-Emmanuel Deluxe para que nos falasse de Yé-Yé Girls, o jornalista, cortês, lamentou não falar português, apesar de ter avós portugueses e mãe portuguesa, mas já nascida em França. Sugeriu que também contactássemos Lio. “Ela fala português muito bem.” Fomos descobri-la enquanto viajámos pelo universo do yé-yé. Mulher de convicções fortes, sem papas na língua. Cantora e actriz. Estrela pop juvenil que soube despir essa pele e atravessar os tempos com graciosidade. Apresenta-se: “Sou alérgica à autoridade. Para baixar a cabeça, é preciso que não me peçam para o fazer, baixo a cabeça por mim própria. Mas aceito muito bem a mestria. Quando uma pessoa tem o poder dessa sabedoria, é-me muito natural segui-la. Nesse caso, sou a pessoa mais dócil.”

Foto
Lio em Roland Garros, em 2010 Stephane Cardinale/People Avenue/Corbis

Wanda Tavares de Vasconcelos nasceu em Mangualde. Avô médico, comunista. Mãe estudante de Filosofia e Letras em Coimbra. Pai estudante de Medicina. A mãe acabaria por separar-se do pai, sem divórcio oficializado — estávamos no Portugal do Estado Novo e o divórcio, ainda para mais quando requerido pelo cônjuge feminino do casal, era processo difícil, tortuoso. Entretanto, a mãe juntara-se ao homem com quem Wanda viria a crescer. Quando chegou a convocatória para integrar os combatentes portugueses em Angola, a família tomou a decisão. “O meu irmão ficou com os meus avós e a minha mãe fugiu comigo debaixo dos braços. Saímos de Portugal quando a minha mãe estava grávida da minha irmã Helena” — Helena que, assinando Helena Noguerra, se tornaria também ela actriz e cantora na Bélgica (iniciou carreira discográfica em 1988, andou em digressão com os Nouvelle Vague em 2010, o seu último álbum, Année Zero, chegou o ano passado, e o penúltimo, Fraise Vanille, de 2007, é uma pequena preciosidade onde a folk se cruza com a chanson).

Adolescente, Lio ia algumas tardes ajudar a mãe, que trabalhava numa Mediateca, “oficina cultural do Estado belga”, para juntar alguns trocos à mesada. Foi ali que um amigo dos pais, o músico e compositor Jacques Duvall, reparou nela. “Achava que eu tinha graça e que podia cantar.” Com o compositor Jay Alanski, acabariam por gravar Le banana split, mas o single foi recusado por todas as grandes editoras belgas. Estávamos em 1979, o ano em que, para Lio, tudo mudou. Isto porque uma pequena editora decidiu apostar na canção em que uma voz coquette fala de gelados e abomináveis homens (e mulheres) das neves.

Le banana split atingiu o topo das tabelas e vendeu dois milhões de cópias. A adolescente Lio transformava-se numa estrela pop, identidade firmada na ambiguidade entre inocência juvenil e sensualidade adulta. A dimensão do que lhe sucedia era difícil de digerir. “Lembro-me de me sentir mais emocionada quando me disseram que tinha vendido dois mil discos, porque pensei em todos os meus colegas de liceu com o disco debaixo do braço. Quando me disseram que estava a vender 50 mil por dia, isso já me ultrapassava. Não concebia o que significava.”

Seguiram-se tempos “caóticos”. “Os meus pais eram intelectuais de esquerda e não gostavam daquele número da celebridade e das canções do hit parade. Não tinha álibi cultural, era simplesmente mercantil, julgavam eles.” Lio foi então, como diz, “aprender a vida”. Saiu de casa, continuou a gravar. Outro número 1 em 1980 (Amoureux solitaires). Uma colaboração com o duo americano Sparks em 1982 (Suite Sixtine). O início de uma relação com a ZE Records, editora de relevo no fixar da emergente música nova-iorquina do início da década de 1980. A presença de John Cale, o ex-Velvet Underground, na co-produção de Pop Model, álbum de 1986. Entretanto, já passara para o cinema — outro ponto de contacto com as cantoras do yé-yé, que muitas vezes saltavam entre o estúdio de gravação e os estúdios de rodagem cinematográficos.

O público francês viu-a, por exemplo, em Golden Eighties, de Chantal Akerman (1986), ou Itinéraire d’un enfant gâté, de Claude Lelouch (1988). “Foram encontros muito interessantes, mas guardo do filme com a Chantal Akerman uma memória especial, por ser o primeiro e ser tudo novo para mim. Além disso, os meus pais adoravam-na e deu-lhes prazer ver-me num filme intelectual”, conta.

Pouco a pouco, foi-se libertando da imagem de Lolita que se lhe tinha colado com a entrada fulgurante no universo da pop. Foi gravando mais discos, colaborando com Étienne Daho ou Jacques Dutronc e cantando, por exemplo, o poeta Jacques Prévert. Foi sendo actriz em mais filmes no cinema e na televisão, arriscou uma passagem pelo mundo da moda enquanto designer. Não vê, de resto, nenhuma das actividades como diferentes entre si. “Sinto-me mulher em qualquer uma. A forma de expressão artística não é o principal.” Define-se: “Sou alguém que conta histórias. Se tivesse jeito para matemática, inventaria teoremas, que seriam a minha forma de comunicar com o mundo. Na verdade, defino-me fundamentalmente por ser mulher e mãe.”

Lio tem seis filhos e “nada chega ao calcanhar dessa obra”: “Sendo que procriar é criar, acho que o arquitecto do universo deve ser uma mulher”, diz, entre risos e muito séria, com uma energia contagiante, amante de uma boa conversa. Mulher que não aprecia a expressão feminismo (“de ismos não gosto muito”) — prefere “feminologia”. Cantora a quem a actual cultura mediática diz muito pouco. Em 2008, foi júri do concurso televisivo francês Nouvelle Star. Em 2011, repetiu o papel, desta vez no The Voice Belgique. Não o fará mais. “Já não conseguia mais. Não quero tornar a pôr os pés lá dentro. Cheguei a um ponto em que perguntei a mim mesma: ‘Ficarias feliz se a tua filha se inscrevesse?’ A resposta surgiu em letras de fogo: ‘Não.’ Aliás, faria tudo para a minha filha não ir para lá. Porque aquilo mata, as pessoas morrem naqueles concursos.”

Lio gosta de música com graça, mas a fábrica de celebridades actual, para ela, não tem piada nenhuma. Quando iniciou a sua carreira, compreendia perfeitamente o discurso “no future” dos Sex Pistols e achava-o necessário. Mas sentia-se inspirada pelos Blondie, “que iam buscar aquele lado girly dos anos 1950”. E adorava o Lust for life, de Iggy Pop, “porque era uma provocação, um sorriso. E sorrir é uma das coisas mais poderosas que podemos fazer no mundo. Sempre gostei de coisas ligeiras, generosas e risonhas. Começando a cantar aos 14 anos, o que fui procurar? Sylvie Vartan, Françoise Hardy”. Obviamente.

22 de Junho de 1963. Algo estava a acontecer na Place de la Nation, em Paris. Centenas de milhares enchiam a praça; 150 mil, dizem os relatos; 150 mil adolescentes, contextualizemos. A festa fora organizada pela Salut Les Copains, programa de rádio transformado em revista em cujas páginas se revelava uma nova França. Todos estavam ali para ouvir as canções das Les Gam's, o rock dos Les Chats Sauvages ou o casal ícone da nova música francesa, formado pelo rocker Johnny Hallyday e pela yé-yé Sylvie Vartan. O que aconteceu de seguida? Os teddy boys apareceram com casacos de cabedal e com a sua energia de “rebeldes” sem causa alimentada por filmes de James Dean e em ruidosas guitarras eléctricas e a festa rebentou em caos. Cadeiras e vitrines partidas, a polícia incapaz de controlar a multidão durante várias horas.

Cinco anos antes de Jim Morrison, em When the music’s over, gritar “We want the world, and we want it now”, cinco anos antes de no Maio de 1968, razoavelmente, se exigir o impossível, uma multidão numa praça parisiense mostrava que algo estava a mudar. Uma geração reclamava o seu lugar no mundo. Melhor, uma geração queria viver um novo mundo, com música diferente, roupa diferente, uma atitude diferente perante a vida e as convenções sociais. Os cantores e cantoras eram “apenas” ícone e transmissão para as massas desse desejo. O yé-yé, que ainda não se chamava yé-yé naquele 22 de Junho de 1963 (a expressão seria cunhada, na ressaca do acontecimento, pelo sociólogo Edgar Morin, em artigo publicado no Le Monde), anunciava-se com estrondo. As reacções do mundo adulto não se fizeram esperar. Philippe Bouvard, célebre radialista e apresentador televisivo, indignadíssimo e sem noção das proporções do que afirmava, perguntava no Le Figaro: “Qual é a diferença entre o twist em Vincennes e os discursos de Hitler no Reichstag?” O Presidente da República Charles de Gaulle, que conhecera Hitler muito bem, fez a crítica à juventude francesa de uma forma menos espalhafatosa. “Estes jovens parecem ter muita energia para gastar”, comentou. “Vamos pô-los a construir estradas!”, sentenciou.

O episódio é recordado em Yé-Yé Girls Of 60s French Pop, publicado no final de 2013 nos Estados Unidos (em Portugal, podemos encomendá-lo através de lojas online como a Amazon). Através do livro, mergulhamos num outro tempo e na música e estética que fez esse tempo. Mergulhamos na história de uma geração a descobrir-se a si própria e acompanhamos o impacto que teve nas seguintes. Estão lá as grandes figuras do yé-yé. As mais célebres: France Gall, Françoise Hardy ou Sylvie Vartan. Mas muitas mais. A luminosa Annie Philippe, cujo rosto ilustra a capa do livro, a Chantal Goya que Jean-Luc Godard levaria para Masculino Feminino (filme de 1965) depois de a ver actuar na televisão, a menininha Chantal Kelly ou a enérgica Charlotte Leslie. Isto, sem contar com as cantoras yé-yé em part-time, como as actrizes Anna Karina ou Brigitte Bardot, ou uma personagem de culto como Stella, cantora anti-yé-yé que satirizava o culto da celebridade (“Porquois pas moi?”) e a rebeldia dos privilegiados, os meninos ricos que se disfarçavam de beatnicks durante uns anos, antes de se fartarem e ocuparem um bom cargo na empresa do papá (“Beatnicks d’occasion”).

A lista é interminável e foi precisamente por serem tantas e tão diversas as cantoras yé-yé que Jean- Emmanuel Deluxe, nascido em 1970, quando a febre já tinha terminado (o Maio de 1968 marca, de certa forma, o fim da festa adolescente e a entrada na idade adulta), decidiu pôr mãos à obra. É o que nos conta a partir de França: “Achava que conhecia muito bem o yé-yé, mas um dia entrevistei a April March e ela deu-me uma cassete com uma série de artistas mais obscuros. Percebi que havia muito mais e que era uma pena que se falasse sempre dos mesmos nomes na televisão e que passassem sempre as mesmas canções na rádio. É uma realidade muito mais cool do que julgava. Decidi então escrever um livro sobre o tema.” No feminino.

Claro que havia, no mesmo período, estrelas masculinas como Johnny Hallyday, Jacques Dutronc ou Claude François, mas a história das mulheres do período é mais rica, mais determinante. “Foi a primeira geração de raparigas que não queriam ser como as mães. Não tinham uma atitude declaradamente política e é hoje difícil compreender quão poderoso foi, mas representou verdadeiramente uma mudança. Os adultos achavam que a música era má, ruidosa, que elas se vestiam de forma ridícula e que faziam coisas estúpidas. Foi bastante provocador. E as estrelas eram parecidas com o público que as ouvia. Ou seja, havia toda uma identificação e uma proximidade.”

“Não podemos esquecer um pormenor”, alerta Lio. “Uma coisa é a expressividade de uma cantora yé-yé, mas de onde vinha o dinheiro? A indústria que se punha a promover o yé-yé e as mini-saias era, como hoje, masculina. A diferença é que estava menos fechada, porque não havia crise, porque havia uma certa facilidade na vida. Eles viram que podiam aproveitar.” É por isso que Lio, que adora a “desenvoltura” e “ligeireza” daquela música, a forma como se tornou “expressão popular de um momento”, não consegue encontrar qualquer humor num dos mais célebres episódios da história do yé-yé. Protagonistas, France Gall e Serge Gainsbourg, que descobriu na cantora o veículo para se afirmar como protagonista de uma nova era. Ele ofereceu-lhe uma canção supostamente cândida sobre chupa-chupas, Les sucettes. “Les sucettes à l’anis”, canta Gall no refrão. Uma metáfora sobre sexo oral que se tornou um grande sucesso — e a ingénua France só descobriu sobre o que cantava realmente depois de todos os outros. “Toda a gente acha que o Serge Gainsbourg foi muito inteligente com a Les sucettes e que a France Gall era muito estúpida. Eu acho que ele foi um homem muito perverso, sem nenhum olhar sobre aquela criança. Cada um escolhe o seu campo. Em França, toda a gente acha muita piada a que um homem de 40 anos tenha aquele olhar perante uma miúda de 16 anos. Isso é um problema”, acusa.

O yé-yé não escapava à ambiguidade. Manifestava-se um desejo de independência, de as cantoras representarem uma feminilidade livre e dona do seu destino, mas deparávamo-nos também com submissões aos papéis sociais femininos do passado. Sylvie Vartain, por exemplo, chegou a cantar versos que encheriam de vergonha qualquer espírito vagamente feminista. Eis o refrão de On a toutes besoin d’un homme: “Laver, repasser, cuisiner, travailler / Nous les filles on saura vos garder” (“Lavar, passar a ferro, cozinhar, trabalhar / Nós raparigas saberemos como vos manter”).

“Yé-yé e as cantoras pop trouxeram uma nova frescura à indústria musical e a sua juventude penetrou o mundo aborrecido dos adultos. Mas não eram revolucionárias, de todo”, lemos em Yé-Yé Girls. O segredo estava na “afirmação de uma cultura popular”. A televisão, o rock e o cinema americano, a jukebox, a publicidade. “Nos despreocupados anos 1960, o crescimento do consumo parece surgir paralelamente à emancipação das mulheres e dos jovens”, escreve Deluxe. “Coisas de plástico estavam por todo o lado: de rádios transístores a secadores de cabelo, às botas brancas das mulheres. [A revista] Mademoiselle Age Tendre organizava um Concurso Miss Adolescente todos os anos: os leitores escolhiam a melhor representante, que era depois afortunada o suficiente para conviver com os seus cantores preferidos e a quem eram atribuídos vários presentes, incluindo uma scooter ou um automóvel.”

Vemos as concorrentes, muito jovens e esforçando-se ao máximo para parecerem alegres ou misteriosamente glamourosas, numa das imagens de um livro profusa, cuidadosa e deliciosamente ilustrado de acordo com a estética da época. Vemos e lemos. Ficamos a saber que, tal como nos reality shows de hoje, mas sem a padronização estupidificante actual, porventura inevitável na era do telelixo, as vencedoras do Concurso Miss Adolescente tornavam-se elas mesmas estrelas. E eis que Elsa Leroy, vencedora em 1965, se torna cantora no ano seguinte.

“A vaga yé-yé pode ser vista como uma espécie de alegoria para a era conhecida como ‘Trente Glorieuses’ (o boom económico do pós-guerra), durante a qual as pessoas acreditavam no moderno, na moda e no vigor da juventude. Uma era a transbordar de optimismo e de crença no futuro”, escreve Jean-Emmanuel Deluxe num dos primeiros capítulos. “Livre e colorida, a música yé-yé tornou-se, em retrospectiva, um oásis de espontaneidade exótica criada para animar as pessoas.” A juventude francesa encontrava uma voz, uma forma de se exprimir sem o controlo dos pais, da escola, da religião. Encontrou-a em curtas canções que traduziam a pop britânica e o rock’n’roll americano para França — o que não surpreende, tendo em conta que os compositores, os produtores e os músicos eram homens mais velhos formados no jazz e na clássica, como o referido Serge Gainsbourg, Paul Mauriat ou Charles Gall, pai de France Gall e letrista de Charles Aznavour ou Edith Piaf, a maioria deles desdenhosos daquela nova música “simplória”, mas empenhados em explorar o filão com sofisticação.

Quando o multifacetado Daniel Filipacchi (criou as “bibliobus”, bibliotecas itinerantes para os veraneantes; foi fotógrafo da Paris Match no final dos anos 1940; director de editora jazzMood) fundou a Salut Les Copains, a mais emblemática revista do período, estimava vendas de 150 mil exemplares por edição. As contas saíram-lhe furadas: 800 mil era o número correcto. As sementes estavam lançadas. O que daí frutificou, cresceu e se ramificou até ao presente, porém, não é visto por Lio, que tão bem aproveitou o espírito do yé-yé para a sua era, como uma evolução agradável. “Parece-me que hoje em dia ser uma pop girl já não leva a muita libertação. Isso pode ter acontecido durante uma época com mais desenvoltura em que aquelas raparigas, mesmo nas mãos de uma indústria totalmente masculina, conseguiram uma certa abertura.” Continua: “Não estou nada contente com a forma como tudo evoluiu nas raparigas da pop. Não sei como é em Portugal, mas aqui nos concursos de tele-realidade ganha sempre uma ‘mamuda’ e ‘cuzuda’ que acabará em todas as revistas. E depois ouvimos raparigas dizerem que é mais importante ter um bom par de mamas que ter inteligência. É preciso evoluir, mas a evolução é lenta. Nós, mulheres ocidentais, ainda temos alguma sorte. Ainda podemos dizer uma ou outra coisa que não somos postas na pildra, mas torna-se complicado viver entre uma hiper-religiosidade que está a pôr as mulheres debaixo de um véu e uma hipersexualização que não leva a nada de bom.”

Aqui chegados, quase nos apetece exclamar, exagerando: “Não foi para isto que fizemos o yé-yé!”, essa libertação social bem no coração da emergente sociedade de consumo, essa música que deu voz e protagonismo às mulheres que o cantavam e que o ouviam. Não foi certamente para, muito depois do yé-yé, sociedade de consumo plenamente instalada e vivendo obcecados pela imagem num mundo inundado delas (devidamente retocadas em Photoshop), chegarmos aqui: “Sabe qual foi a última grande coisa que se falou sobre mim?”, pergunta Lio. “Foi ter mostrado em público o meu cabelo não pintado. Criou-se um grande debate na Net sobre se tenho ou não o direito de me mostrar velha. Até o Nouvel Observateur discutiu isso... Devíamos viver descomplexadas. Como pode chocar tanto uma mulher que mostra os cabelos brancos? Um dia destes passaremos a ser censuradas se não usarmos botox, se não retocarmos o nariz ou ficarmos com uma boca de peixe: ‘Como é que aquela mulher que tem dinheiro para fazer cirurgia plástica ousa não o fazer?’”, acusarão.

Este é o presente. Esse em que Lio pretende dedicar-se a viver calmamente, “a fazer discos e a pô-los na Net”. Do passado, olha-nos essa miríade de raparigas transformadas em estrelas que, com a sua ingenuidade, o seu talento e o seu desejo de vida, mostraram em França que o mundo estava a mudar. O yé-yé continua presente no imaginário colectivo porque se tornou “parte indissociável da cultura” francesa, aponta Jean-Emmanuel. Porque, acrescenta, “nos tempos negros de hoje, esta música transmite-nos cor, energia e inocência. Claro que as cantoras eram usadas pelos produtores e compositores, claro que eram vendidas como um produto, mas era um produto de qualidade, digamos assim”.

A última palavra é de Lio: “Apesar de se ter tornado uma realidade económica e aproveitada enquanto tal, mostrou que era impossível parar a juventude. Mostrou que, quando o poder quer controlar tudo, não consegue. A humanidade é complexa demais. E ainda bem que é assim. Jovens ganhando a consciência de que têm poder, mulheres percebendo que podem ter mais liberdade, que podem ser autónomas com o dinheiro que ganham. Isso fez com que tudo evoluísse.” Yé-yé? Yeah!

Sugerir correcção
Comentar