Petrit Halilaj começou de novo

Na obra do kosovar Petrit Halilaj, desde anteontem no Kunsthalle Lissabon, a guerra e a migração confrontam-se com uma confiança no futuro que interpela raízes, lugares e histórias.

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Petrit Halilaj tinha 13 anos quando a guerra chegou ao Kosovo: "As casas arderam, a minha escola desapareceu, pessoas morreram ou foram deslocadas" MIGUEL MANSO
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A instalação que Petrit Halilaj apresenta em Lisboa é composta por fragmentos da grande peça com que participou há um ano na Bienal de Veneza INÊS CARDOSO
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O artista kosovar tem usado o seu disfarce de canário na inauguração das exposições INÊS CARDOSO

Na sala da Kunsthalle Lissabon, Petrit Halilaj (Kostërrc, Kosovo, 1986) sorri, leva o braço à nuca e rememora os principais momentos do seu percurso artístico. Interrompe-se, aqui e ali, para corrigir uma data ou um nome, entusiasma-se quando fala da família ou do futuro, procura as palavras certas antes de ser assertivo. Está em Lisboa para inaugurar, no espaço da Avenida da Liberdade, a sua primeira exposição em Portugal (patente ao público desde anteontem). Tente-se uma descrição daquilo que o espectador ali encontra: painéis de madeira dobrados que formam uma dança suspensa de curvas. São formas abstractas que à partida não remetem para qualquer história, mas as manchas de sujidade e um fato de carnaval, que alguém deixou esquecido, intrigam.

O que estão ali fazer? De onde vieram? O trabalho de Petrit Halilaj é indissociável da biografia do artista. Obter uma resposta à pergunta exige viajar no tempo. Durante a Guerra do Kosovo, Petrit Halilaj foi forçado, com a família, a abandonar a sua casa, em Runik, e a viver num campo de refugiados.


A guerra marcou a sua vida. “Foi um acontecimento que interrompeu o meu quotidiano, tinha eu 13 anos. As casas arderam, a minha escola desapareceu, pessoas morreram ou foram deslocadas. Quando pediram para descrever o que tinha visto, falei de cadáveres, soldados, valas comuns. Coisas que vi e ouvi na televisão e que vi de facto”, sublinha.

Antes da guerra, o desenho era já um hábito reconhecido e acarinhado pela família. E foi, porventura, para o lembrar e proteger que mãe do artista escondeu, sob a terra, os desenhos do filho, minutos antes de abandonarem a casa. Petrit Halilaj viria depois a recuperá-los e a integrá-los na instalação Several Birds Fly Away When They Understand (2012), ao lado de outros desenhos mais recentes ou apropriados de arquivos do Museu de História Natural do Kosovo. A infância, o conceito de casa, a vibração frágil e tocante da arte confundem-se neste trabalho. “A guerra não é a origem do meu trabalho. Faço parte de uma geração pós-conflito”, diz. “A minha experiência é sobretudo a de alguém que sai de casa, que recomeça de novo, com esperança de construir uma nova identidade, de começar do zero."

Depois da experiência no campo de refugiados, o artista encontrou uma nova família em Itália e viria a formar-se em arte na Academia de Belas Artes de Brera, em Milão. Nada que o impedisse de olhar para as transformações que o processo de reconstrução impunha ao Kosovo. “É curioso constatar que nos países da região o desenvolvimento por que muitos esperavam aconteceu de uma só vez, com a liberdade, com a Internet. Não houve uma experiência prolongada da democracia. De repente, um sistema político de décadas foi substituído por outro."

 

Sem o peso da História

Mas Petrit Halilaj não faz juízos, prefere, através da arte, lidar com a realidade que o confronta. Foi o que fez na Bienal de Berlim, em 2010, com outra instalação, The places I’m looking for, my dear, are utopian places, they are boring and I do not know how to make them real. “Depois da guerra, um dos sonhos das pessoas foi reconstruir as suas casas ou construir casas novas. E, em busca desse sonho, muitas abandonaram o campo para viver nas cidades. Quis homenagear de certa forma esse sonho, que era também o da minha família”, revela. Regressados a Runik, os pais reconstruíram a casa cuja estrutura de madeira o artista replicaria em Berlim. “Em Kosovo, nasceu uma casa real. Em Berlim, apenas a sua estrutura, o seu esqueleto. Achei importante trazer a madeira, não o cimento. É uma verdadeira casa, livre e tangível, sem o peso da História."

Em Lisboa, o artista procura reproduzir uma sensação semelhante. A instalação I'm hungry to keep you close. I want to find the words to resist but in the end there is a locked sphere. The funny thing is that you're not here, nothing is é composta de fragmentos da grande peça apresentada em 2013 no Pavilhão do Kosovo da Bienal de Veneza. Um ninho gigante feito de galhos, ramos, terra e lama, no interior do qual os espectadores entravam e descobriam, mediante um ponto de vista determinado, um outro espaço, habitado por dois canários e um casaco. “A essa sala as pessoas só tinham acesso visual. Esta apresentação representa um segundo passo, para tornar tangível o que era misterioso ou intimo." Os painéis provêm dessa sala e o disfarce de carnaval é afinal um fato de canário que o artista tem usado em performances no contexto das inaugurações. “Não sei se vai ficar aqui ou se o vou usar. Não forçarei nada”, afirma. Mas um certo mistério permanece. Porquê os canários? “São do meu namorado, fazem parte do meu quotidiano, são animais muito frágeis que precisam do cuidado humano. Mas não os trouxe. O objectivo nunca foi reconstruir a peça, mas reutilizá-la no presente. Quis abstractizar o pavilhão para quem não o viu, mas as coisas que apresento não são abstracções. Têm referentes reais, concretos."

A biografia continua a ser uma fonte de materiais, de ideias e de reflexões para Petrit Halilaj, e nela inscrevem-se as experiencias da migração e da guerra. Mas será um erro reduzir o trabalho deste artista a essas situações. “Eu caminho com as minhas raízes. São elas que me permitem viajar e olhar para o mundo, mas de uma forma silenciosa. Não quero negar a importância e os efeitos [da guerra e da migração), mas é muito perigoso usar esses temas. Para mim, não constituem o ponto de chegada. Quando decidiu reconstruir a sua casa, o meu avô pediu-me que o ajudasse a retirar as ruínas. Achei isso interessante e acabei por transformá-las em esculturas que modelei a partir de joalharia da minha mãe. Gosto da ideia de que essas ‘ruínas’ encontraram outras casas. Foi uma forma que encontrei de lidar com o que era supostamente intocável, sagrado, e de me aproximar de um futuro." 

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