A ética da Coca-Cola roubada

Convencemo-nos que roubar um euro é grave, mas surripiar uma Coca Cola do mesmo valor não tem mal algum

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Omar Bariffi/Flickr

Porque é que roubar Coca-Colas não causa nos problemas de consciência, mas dinheiro já parece ser um problema de ética? É esta a pergunta que Dan Ariely se fez quando conduziu estudos nas residências de Harvard, onde alunos partilhavam os frigoríficos. A equipa introduziu “packs” de Coca-Colas no meio da parafernália alimentar dos frigoríficos e estas iam desaparecendo, muito devagarinho. E como nunca ninguém se queixou, começaram a desaparecer mais rapidamente. Mas quando fez o mesmo com um prato que tinha pequenos queijos e várias moedas, o dinheiro já não desaparecia.

A resposta está provavelmente na forma como nós lidamos com os problemas de ética no interior da nossa consciência: a Coca-Cola é um bem que provavelmente nos seria oferecido pelo seu dono, cuja falta não fará grande diferença. Ninguém dará sua falta e ao fim de algum tempo em que ninguém se queixe, já se tornou normal. O dinheiro não cumpre estes requisitos e é transaccionável. Convencemo-nos que roubar um euro é grave, mas surripiar uma Coca Cola do mesmo valor não tem mal algum.

Aparentemente, a ética nem sempre tem contornos bem definidos. Pior: quando todos fazem uma mesma acção, somos tentados a achar que não há nela qualquer falta de ética. E quando quem as faz não é julgado, estão criadas as condições para todos as repetirem.

Vem o assunto a propósito da falta de ética generalizada de tantos políticos e gestores, que têm o lamentável condão de já nem sequer surpreender, chocar e indignar as pessoas, como se os abcessos tivessem de fazer parte da nossa realidade. Porque num mundo onde a regulação é mínima e os castigos praticamente não existem, cada um faz o que quer e leva os outros a fazer o mesmo, sem que nenhum tenha consciência da gravidade e da falta de ética dos seus actos – o que por sua vez aumenta a propensão a novos delitos, ainda maiores, como se fossem os primeiros a entrar no domínio alegadamente virgem da falta de ética.

Veja-se a oferta de 14 milhões do BES a Ricardo Salgado, esse mago da engenharia financeira. Um prémio pelos serviços prestados, pelos resultados conseguidos. É uma espécie de sequela dos episódios lamentáveis da banca nacional, protagonizada pelos mestres João Rendeiro, Oliveira e Costa e Jardim Gonçalves, cada um com diferentes técnicas na sua arte de representação no mundo imaginário de banqueiros milagrosos. Voltaremos a ter de assistir a um filme com cheiro a vómito, onde em vez de pipocas recebemos dívidas para pagar?

Estamos fartos de ser o espectador roubado, o contribuinte enganado. Achamos que é hora, que é mais do que hora de reagir, mas a verdade é uma:

Não sabemos o que fazer.

Não vemos alternativas nas pessoas, nos partidos, nas governações. Chegamos a desesperar de medo que todos sejam igualmente corruptos. Não são, mas isso por si só não chega. Precisamos de mais, muito mais. Precisamos de perceber que o problema está em nós mesmos, na sociedade. Na cidadania, na tolerância, na exigência. Temos sido incapazes de exigir mais qualidade na governação, somos nós que temos tolerado uma sociedade em que os artistas de circo não são castigados porque sabem de mais e podem desmoronar meio ecossistema.

O que parece certo desde logo é que a indignação deixa de ser um direito para passar a ser um dever, pela primeira vez. Temos menos direito de ficar indiferentes, e mais dever de nos indignarmos. Porque temos de ter consciência que qualquer caminho passará por uma sociedade mais presente, mais atenta, menos tolerante com os enganos políticos ou de colarinho deslavado… Temos de exigir castigos severos para os artistas de circo que tornam as nossas vidas numa tragédia, da mesma forma que exigimos transparência e criamos estímulos a governações responsáveis e sustentáveis, mesmo que pouco populares.

Consciência, indignação, exigência. E o que mais?

Infelizmente, sou melhor a fazer perguntas do que a dar respostas.

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