Do Maracanã ao Terreiro do Paço

Preferimos não falar simplesmente de exclusão, mas de uma mobilização produtiva dos pobres enquanto excluídos.

Há pouco menos de um ano visitei o Estádio do Maracanã, onde foi jogada a final deste domingo. Era um jogo do Brasileirão e defrontavam-se o Flamengo e o Vitória. Da partida não reza a História, mas o estádio tinha acabado de ser objecto de uma profunda remodelação, visando o Mundial de 2014. E se a obra realizada ainda permite que nos venha à memória a primeira "Copa" que teve lugar no Brasil (estávamos em 1950), faz já pairar sobre o Maracanã a imagem dos novos estádios que têm vindo a ser erguidos um pouco por todo o mundo.

De enorme interesse para o estudo do desporto, os estádios de futebol participam de transformações que fazem a história do meio urbano e bastaria a dimensão dos edifícios em questão para que suspeitássemos do seu impacto na geografia das metrópoles. De um ponto de vista cultural, a sua importância é igualmente significativa e, de certa maneira, podemos até afirmar que os estádios tiveram um papel decisivo na criação de um fenómeno definidor da época contemporânea, o espectáculo. A forma de um estádio repartir o seu próprio espaço interior e de se relacionar com a cidade que o envolve é desde logo essencial para a criação da moderna figura do espectador: o estádio autoriza o espectador a entrar no seu interior, seleccionando-o entre a população da cidade, mas logo lhe interdita o acesso ao terreno de jogo, que reserva ao jogador.

Hoje, todavia, o processo de remodelação de velhos estádios e de edificação de novos recintos já não trata apenas de instituir a figura do espectador, mas igualmente promove a condição telespectadora. Os requisitos das televisões determinam fortemente o programa arquitectónico dos novos estádios, como confessou o arquitecto Souto Moura a propósito do Estádio de Braga: "Eu deduzi, não percebendo muito de futebol, que tinha de fazer um palco verde para 22 pessoas mais três árbitros, com 105 câmaras a filmar, para ser transmitido para todo o mundo e cujos direitos são de milhões de contos. O que eu tinha de fazer era um estúdio de televisão." Difícil é negar, pois então, que vivemos os anos da subordinação do futebol ao regime mercantil do espectáculo.

Tal subordinação não decorre, todavia, de uma forma simples e linear. É certo que o Mundial que agora encerra mostra uma vez mais a força do império da televisão, capaz de determinar os horários dos jogos contra os interesses dos próprios atletas, fazendo do futebol uma mercadoria indiferente às condições de trabalho dos seus produtores. No entanto, a criação de um mercado futebolístico global não faz tábua rasa dos novos territórios a que se expande. Dir-se-ia até que esta expansão é tanto mais eficaz na medida em que, ao invés de simplesmente rasurar todas as diferenças, antes apoia e cultiva parte delas. Com efeito, sendo resultado de uma ordem económica global, os grandes eventos desportivos igualmente concitam a acção dos Estados nacionais. Estes encontram no tempo do evento uma oportunidade para se diferenciarem na cena internacional, na qual pretendem fazer valer uma imagem de modernização, recuperando do seu “atraso” e afirmando o seu “progresso” sobre os demais Estados. Podemos inclusivamente dizer que os grandes eventos articulam – não sem tensões, é certo – programas económicos nacional-desenvolvimentistas e projectos globais de índole liberal. De resto, as condições climatéricas a que os futebolistas foram sujeitos neste Mundial não se explicam apenas pelo facto de o desporto acertar as suas horas pelo interesse televisivo, mas também pelas políticas de dispersão territorial próprias a um Estado federal como o brasileiro.

O futebol além do estádio
Nos últimos anos, o tipo de parceria público-privada que torna possível a organização de um grande evento desportivo tem comprometido forças políticas cuja trajectória histórica era até marcada pela crítica ao liberalismo económico, do comunismo chinês ao ANC de Mandela, culminando no PT de Lula. Aliás, as desavenças entre Joseph Blatter e Dilma Roussef não impedem esta de avançar, por estes dias, a possibilidade de nova candidatura brasileira à organização de novo Mundial.

O presente Mundial, no entanto, também ficará para a História pelo facto de, na sua preparação, terem feito sentir a sua voz outros interesses que não apenas os da economia global e os do Governo brasileiro. Como é sabido, há um ano que uma série de protestos trouxe milhões de pessoas para as ruas de metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro. E do ciclo de contestação então inaugurado resultou, entre outras, a denúncia da natureza elitista do evento, verificável pelo tom de pele dos adeptos presentes nos estádios.

A brutal exclusão a que as classes pobres brasileiras são condenadas motiva análises políticas e sociológicas de vários tipos. Da nossa parte, a respeito da economia de um evento como o Mundial, e na peugada de um colectivo de pesquisadores e militantes brasileiros (a UniNômade), preferimos não falar simplesmente de exclusão, mas de uma mobilização produtiva dos pobres enquanto excluídos. Vale a pena, por exemplo, voltarmos a olhar para as imagens do evento que nos foram oferecidas pelas televisões. Se desvelaram o interior dos recintos e focaram ínfimos pormenores de jogo, também deram conta de outras paisagens futebolísticas, em que a prática futebolística dispensa o enquadramento do estádio e é caracterizada por uma maior informalidade.

Nestes outros territórios do futebol, a figura do espectador é menos nitidamente definida, confundindo-se quem está e quem não está a jogar, assim como o princípio e o fim do terreno de jogo. Falamos, é claro, das praias e dos brincas n’areia, uma e outra vez filmados, mas também das favelas, com os seus campos improvisados, objectos de inúmeras reportagens fotográficas. Como se os pés descalços das crianças que jogam na rua, noutras ocasiões interpretados como sintoma de atraso e miséria, quisessem testemunhar a pureza original de um espectáculo animado pelas chuteiras fluorescentes de uns quantos profissionais. O clip de abertura que a FIFA faz passar antes da transmissão televisiva dos jogos começava mesmo por dar a ver uma criança de pele escura que jogava à bola sobre um telhado de chapa, no alto de um morro, presume-se que numa favela carioca, a câmara só depois se aproximando do interior do estádio. De uma forma perversa, este tipo de imagens sugere-nos que a pobreza é não apenas o lugar de uma exclusão e de um vazio, mas também um elemento explorado e rentabilizado por um sistema económico transnacional.

Estarão os pobres condenados a esta situação ambivalente, incluídos na economia global mas sem direito a um lugar no estádio? Não sabemos. Seria certamente abusivo pretender encontrar um programa político alternativo no ciclo de protestos iniciado há um ano e que tem agora no horizonte os Jogos Olímpicos de 2016. Mas seria também precipitado considerar esses movimentos simples efeitos espasmódicos de uma massa de excluídos. Para concluir em jeito de amizade, aos vários manifestantes que animaram os movimentos que fizeram a sua bandeira do slogan “Não vai ter 'Copa'!” envio notícia de um pequeno artigo publicado na imprensa portuguesa em meados dos anos 40, no jornal desportivo A Bola. Da autoria de Jaime Ferreira, o texto mostra que já então havia quem exprimisse a sua admiração pelos que, nas palavras de Geraldo Vandré, não esperam a hora para fazer acontecer: "Uma das organizações mais 'democráticas' que conhecemos é o 'grupo do pé descalço'… Não possui estatutos. É assim uma espécie de organização anarquista, sem 'freio nos dentes' e incapaz de aderir a qualquer 'estado' organizado, seja através de associações, federações, seja através de qualquer outra burocrática engrenagem. Parece uma máquina negativa, mas tem, inquestionavelmente, uma ordem positiva. Não marca horário para desafios e não tem campo próprio. Um beco, uma travessa ou rua, um largozito serve à maravilha para disputar rija peleja futebolística. Também já fizeram desafios nocturnos no Terreiro do Paço, ante o pasmo das pessoas indignadas que vão ou vêm da 'outra banda' e a muda aquiescência de D. José, do cavalo e do busto do Marquês…"

Bibliografia

Frederico Ágoas, «“Que de longe parecem moscas”: contributos para uma arqueologia do estádio de futebol», em José Neves e Nuno Domingos (orgs.), A Época do Futebol. O Jogo Visto pelas Ciências Sociais, Assírio e Alvim, Lisboa, 2004, pp.263-303.

Giuseppe Cocco, MundoBraz. O Devir-Mundo do Brasil e o Devir-Brasil do Mundo, Rio de Janeiro, Editora Record, 2009.

John Bale, Sport, Space and the City, Londre, Routledge, 1993.

José Neves, "Arquitectura, massificação e democracia – notas sobre um estádio de futebol", em Filipe Carreira da Silva e Pedro Alcântara da Silva (orgs.), Ciências Sociais: Vocação e Profissão – Homenagem a Manuel Villaverde Cabral, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2013, pp. 559-574.

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