Chegou a hora de a Europa aprender com o resto do mundo

Colóquio internacional no Centro de Estudos Sociais de Coimbra junta, a partir desta quinta-feira, dezenas de académicos de vários países. Vão propor que as inovações encontradas no Sul sirvam de lições para o Norte. Boaventura Sousa Santos fala num “novo cosmopolitismo".

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No Djibouti, olha-se para a Europa como terra de esperança. Mas uma nova visão começa a surgir John Stanmeyer/Reuters

Quando ainda era Presidente, Lula da Silva justificou o sentido das reformas no Brasil dizendo que elas eram inspiradas do modelo europeu, colocando ao mesmo tempo uma questão. “Nós estamos a tentar aplicar o modelo social europeu. Por que estão vocês europeus a tentar acabar com ele?”

O episódio “curioso e irónico” desta “célebre palestra” na Europa do ex-Presidente do Brasil é agora evocado pelo sociólogo Boaventura Sousa Santos no contexto da sua proposta de repensar o mundo – levando o Norte a aprender com as experiências no Sul –, num projecto financiado pelo European Research Council e apresentado pelo Centro de Estudos Sociais (CES), que dirige desde 1978 na Universidade de Coimbra. Nesse processo, o sociólogo quer acentuar a importância de uma aprendizagem global, como a que referia e questionava Luís Inácio Lula da Silva.

Alice – Strange Mirrors, Unsuspected Lessons é o nome dado ao projecto que olha os possíveis ganhos das lições a partir de um mundo que idealmente se olharia em espelho e não apenas num sentido. E que tem na conferência Epistemologias do Sul, que decorre – entre hoje e sábado – no Teatro Académico Gil Vicente, um momento charneira, aquele a partir do qual os resultados da investigação dos últimos dois anos vão começar a ser mostrados.

“Uma sensação de exaustão paira sobre a Europa. O que leva a crer que o Velho Mundo já não está capaz de repensar o seu passado e o seu futuro", lê-se no site do projecto que apresenta este colóquio como a ocasião para considerar que uma compreensão do mundo é muito mais ampla do que a visão que dele tem o Ocidente.  

Depois de a Europa inspirar o mundo, chegou a hora de ela aprender com algumas dessas lições dadas e com as inovações noutros lugares por ela nunca experimentadas. "Eu chamo a isto o novo cosmopolitismo. Ou cosmopolitismo subalterno", explica Boaventura Sousa Santos. "São experiências que vêm daqueles que nós, durante muitos séculos, considerámos nossos subalternos."

Será em parte esta a mensagem do colóquio internacional de três dias que vai atrair mais de 600 participantes a Coimbra e juntar importantes oradores, como Arturo Escobar ou Juan José Tamayo, Juan Carlos Monedero ou Gurminder K. Bhambra, entre outros académicos, intelectuais e activistas.

Alternativas e esperança
O projecto Alice – com pesquisa no terreno de estudiosos de vários países – fica concluído em 2016 com sessões em Bruxelas e Estrasburgo, para mostrar na Comissão Europeu e aos parlamentares europeus que outro modelo não só é possível, como é incontornável. “No contexto europeu, não há alternativas”, defende Boaventura Sousa Santos. “A Europa está mergulhada numa enorme crise. E essa crise não é apenas financeira, é civilizacional.”

Se olharmos para o resto do mundo, “há inovações e alternativas”, continua. “Há esperança no mundo.” É essa esperança que o projecto Alice propõe trazer para dentro da Europa, tornando as experiências em países como a Índia, África do Sul, Equador, Brasil ou Bolívia “credíveis”, mostrando como possível e não utópico um outro modelo.
Muito depende da ideologia de quem está no poder, admite o sociólogo, mas as coisas estão a mudar nesses países porque os cidadãos mexem com a política e moldam, também eles, as várias reformas do Estado.

Lula da Silva deixou de ser Presidente em 2011 mas o rumo, inspirado no modelo social europeu, continuou. E mesmo se a população ainda quer mais saúde, mais educação, mais direitos, explica Boaventura Sousa Santos, como se vê nos protestos, uma revolução está em marcha, com novas formas de política mais participativa. No Brasil mas também em países como a Bolívia ou o Equador, entre outros. Uma revolução “no sentido de colocar o Estado ao serviço daqueles que mais precisam”, continua o professor. Nesses países, “a reforma do Estado é muito importante, mas vai no sentido oposto” ao da Europa; vai no sentido de “reforçar os direitos”.

Outras democracias, outros direitos
Na África do Sul, Índia e Brasil, a definição de certas políticas faz-se com a participação de organizações de cidadãos, tendo subjacente a ideia de que um novo conceito de direitos humanos é possível e de que este inclui o direito à saúde mas também os direitos da natureza. Estes estão, desde 2008, consagrados na Constituição do Equador.  

Renovar com os ideais da democracia é o que propõe o projecto Alice. Mas também centrar os valores nas pessoas; e estas fazerem ouvir a sua voz. Tudo isto está em falta numa Europa onde paira uma sensação de exaustão e onde os caminhos do futuro podem ser outros. Uma das formas é olhar para os movimentos populares que brotam nos países do Sul, como o partido Aam Aadmi (Partido do Homem Comum) na Índia, que começou como um movimento contra a corrupção e se tornou num partido com alguma expressão.

“Não estou a dizer que isso não é possível na Europa. É, mas não tem sido possível”, diz, embora aponte “um embrião” desses movimentos populares a afirmarem-se politicamente, na Europa, como o partido espanhol Podemos, liderado por Pablo Iglesias, que se tornou numa grande surpresa nas eleições europeias deste ano ao eleger cinco deputados para o Parlamento Europeu, dois meses apenas depois de ter sido lançado, em Março.

A par da conferência desta semana em Coimbra, o projecto Alice reúne no seu site um espaço de entrevistas ou mensagens breves, dezenas delas, a formar um mosaico de contribuições diferentes num projecto que se quer global e envolve mais de dez países. Neste conjunto, entre os do Sul, estão três dos países emergentes que começam a ter um importante papel no comércio mundial: Índia, África do Sul e Brasil. Além deles – Bolívia, Equador, Moçambique – aos quais se juntam, da Europa, Portugal, Espanha, França, Itália e Reino Unido.

As mensagens, mostradas em curtos vídeos, são de académicos de Paris ou Cidade do México, Jaipur ou Londres, e outras cidades, e acentuam essa ideia de que a linha que separa o Norte do Sul não é a mesma que distingue os pobres dos ricos nem aquela que define o sentido das aprendizagens.

É nas mobilizações para melhorar a existência de todos os dias que a activista social de Jaipur, capital do estado indiano do Rajastão, Kavita Srivastava, foca a atenção. “A Europa esqueceu-se de fazer mobilizações em massa. Vi grandes manifestações na Europa, por exemplo, contra a intervenção no Iraque. Mas a Europa esqueceu-se como fazer lutas para mudar a existência de todos os dias.”

Essa seria uma das primeiras lições a tirar do resto do mundo. A outra é mais uma mensagem: Europa e o Ocidente em geral já não são o centro do mundo. Ambos “têm de ter consciência disso”, diz o francês René Otayek, professor da Faculdade de Sciences Po (Ciência Política) da Universidade de Bordéus. “Vivemos num mundo multipolarizado, e os países emergentes – em África, no Médio Oriente, Norte de África América Latina – desempenham agora um papel cada vez mais marcante na cena internacional.” E frisa: “A Europa tem de ter em conta estas mudanças e deixar de pensar que pode dar lições ao mundo. Se olharmos as revoltas árabes [de 2011], elas convidam-nos a reconsiderar a maneira como vemos e percebemos as sociedades muçulmanas e árabes em geral. Enormes mudanças estão a acontecer nestas sociedades.”

"Fascinados pelo dinheiro"
De outra Universidade em França, da Sorbonne, em Paris, Loïc Blondiaux aponta os valores que se perderam hoje na Europa e florescem em países da América Latina ou África. “Temos de aprender com o seu sentido igualdade e de justiça, o seu espírito combativo. A democracia está em tão mau estado na Europa e não temos alternativa. As pessoas na Europa estão hoje tão fascinadas com o dinheiro e tão apáticas relativamente à política que é preciso termos imaginação democrática. Temos de inovar e, para isso, temos de aprender com o que se faz em muitos países do Sul.”

As aprendizagens podem ser mais económicas, nas análises de Leonardo Avritzer ou José Dari Klein, segundo as quais as crises da dívida não serão resolvidas esquecendo o lado social, ou mais filosóficas, lembrando como o faz Víctor Hugo Martínez González que “não há conceitos culturalmente neutros”. O investigador e professor da Universidade Nacional Autónoma do México aconselha a “recuperação de muitas outras formas de vida” para além das formas presentes no Ocidente e que dominam o mundo.

“Seria muito interessante para a Europa”, diz, diversificar o prisma da vida. “Nalguns sítios, caímos no horror de viver a vida para trabalhar como se a vida não fosse outra coisa que não uma meta. E deixámos de viver momentos que, muitas vezes, são mais vida, são mais vitais, do que o trabalho e a suposta auto-realização.”

Oscar Guardiola-Rivera do Birbeck College da Universidade de Londres propõe outra lição, para ele, a “primeira” de todas: a Europa aprender que “muitos terceiros mundos” (como ilhas pobres e em desenvolvimento) existem “no primeiro mundo” (desenvolvido). E isso “é uma coisa que sabemos, há muito tempo, noutros sítios”, insiste.

Mais: "O fosso é crescente entre os primeiros e os terceiros mundos na Europa”. E daí resulta a segunda aprendizagem para o Norte: “Só quando essas pessoas pobres se juntarem e organizarem entre elas podem tomar consciência de que a sua condição não é diferente da das pessoas pobres da Índia, da China ou das Américas.” E nas Américas, o investigador e professor de Direito Internacional inclui os Estados Unidos – um país onde, frisa, “esse terceiro mundismo é enorme mas porque não se fala é como se não existisse”.  

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