A diferença que o "trabalho de casa" faz

Scolari é, até ver, o “bode expiatório” da vergonha “canarinha”, mas são muitos os problemas do futebol brasileiro. Os 460 milhões investidos pelos alemães em formação mostram que não há coincidências.

Foto
Luiz Felipe Scolari REUTERS/Marcelo Regua

Consumada a maior humilhação da história do futebol brasileiro (só por uma vez o "escrete" tinha perdido por seis golos de diferença, no longínquo ano de 1920, frente ao Uruguai), o expectável coro de críticas não tardou a agigantar-se, com os mais variados alvos: há quem aponte o dedo à exibição desastrosa de David Luiz frente à Alemanha, há quem culpe o paupérrimo desempenho de Fernandinho no meio-campo, há quem prefira as paródias com o “incrível” Hulk que nunca o soube ser neste Mundial ou com o “homem transparente” Fred que não marca golos, mas lidera a lista dos mais odiados – o facto de o jornal “O Globo” ter dado nota zero a todos os “canarinhos” que estiveram em campo é a prova de que, por estes dias, nenhum dos homens que actuou perante os germânicos escapa à maledicência generalizada.

Ora, responsabilidades individuais à parte, há um homem que, neste momento, é o inevitável denominador comum de todas as análises às causas do “Mineiraço” – Luiz Felipe Scolari. O técnico está na berlinda pelas piores razões e é praticamente certo que será dele a primeira cabeça a rolar, depois de a equipa disputar, no sábado, o jogo de atribuição do terceiro e quarto lugares. Entre o rol de sucessores apontados pela imprensa do país, Tite (que venceu a Taça dos Libertadores, em 2012, e que está sem clube desde que, no ano passado, deixou o Corinthians) surge como a hipótese mais viável, mas Alexandre Gallo, actual técnico dos sub-20, é outro nome a ter em conta.

Poder-se-á dizer, ainda que pareça sempre fácil falar quando os prenúncios de desgraça assumem contornos reais, que “Felipão” se pôs a jeito quando preferiu apostar nos mesmos “cavalos de batalha” – mesmo quando jogadores como Hulk ou Fred nunca mostraram estar na melhor forma –, quando se demitiu de procurar alternativas tácticas para um Brasil que, logo no primeiro jogo, frente à Croácia, não pareceu apresentar o fulgor de outros tempos, ou até quando privilegiou uma política de descanso em detrimento do trabalho árduo (o “Globoesporte” recordava ontem que, após o jogo dos oitavos-de-final, com o Chile, numa sexta-feira, a equipa só regressou ao trabalho na terça, ao passo que a Holanda treinou logo no dia seguinte à vitória sobre o México).

Mas olhando ao "trabalho de casa" dos “canarinhos”, e comparando-o com o dos alemães, será justo reduzir a questão ao “modus operandi” de Scolari? A avaliar pela visão do ex-treinador Valdir Espinosa, citado ontem pelo jornal “Folha de S. Paulo”, a resposta parece clara. “A nossa derrota não aconteceu hoje. A selecção é reflexo do futebol do país e o futebol do país não é nada faz tempo”, defendeu o campeão mundial de clubes com o Grémio em 1983.

A afirmação remete-nos para o paradoxo do futebol brasileiro. Principal exportador de atletas para os campeonatos europeus (em 2013, foram 471, sendo que, segundo contas do PÚBLICO, feitas antes deste Mundial, com base no site Transfermarkt, nos últimos oito anos, os emblemas brasileiros terão recebido mais de 1000 milhões de euros em vendas de jogadores), o futebol em Terras de Vera Cruz não parece arranjar forma de se libertar de um problema: o actual momento do campeonato brasileiro, que persiste em ser notícia pelos casos de violência e pelos estádios vazios (no ano passado, a taxa de ocupação dos mesmos não foi além dos 26%). Mais: 85% dos clubes não têm actividade durante o ano inteiro, ficando parados após os estaduais.

E no país de Angela Merkel? Bem, o cenário não podia ser mais diferente. De acordo com dados apresentados pelo site brasileiro UOL, os alemães investiram, entre 2000 e 2013, perto de 460 milhões de euros em formação.

A “revolução” foi empreendida após o fracasso da "Mannschaft" no Europeu de 2000 (a selecção alemã não passou da fase de grupos). A partir daí, a Liga impôs que os clubes teriam de ter academias formadoras de jovens jogadores e a própria Federação alemã de futebol (DBF) passou a criar centros de treino para crianças abaixo de 14 anos, juntamente com as escolas. Junte-se a isso a legislação adoptada para controlar os gastos e a administração dos clubes e o envio de muitos dos técnicos do país para alguns dos centros de treino de excelência da Europa e percebe-se porque é que, nos últimos anos, a percentagem de jogadores alemães no principal campeonato do país aumentou ao mesmo ritmo que os emblemas da Bundesliga se foram impondo nas competições europeias – a final da Liga dos Campeões de 2013, entre Bayern de Munique e Borussia de Dortmund, foi o expoente disso mesmo.

Se os 7-1 do Mineirão tornam quase insustentável a continuidade de Scolari, a quem, desta vez, nem a Nossa Senhora do Caravaggio valeu? É incontornável. Mas, perante este cenário, parece claro que reduzir o fracasso do Brasil e o sucesso retumbante da Alemanha a uma coincidência de contornos agridoces, é tudo menos razoável. 

Sugerir correcção
Comentar