O estrangulamento das almas

A reunificação das duas Coreias marca o regresso do encenador Joel Pommerat ao Festival de Almada. Teatro ácido, de confronto sem retórica, foi eleita melhor peça do ano pelo sindicato da crítica francesa. Esta quinta e sexta-feira no Teatro Municipal Joaquim Benite.

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A reunificação das duas Coreias de Joel Pommerat DR
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A reunificação das duas Coreias abre com a descrição de que a cena que se segue, é ambientada num lugar indeterminado, ou irreconhecível. Depois, a mulher que se dirige a um interlocutor que nunca vemos é despida com a força crua de uma pergunta: “É casada há quanto tempo?”. A resposta determinará um interrogatório que nos fará mergulhar num teatro onde a palavra não procura artifícios visuais, onde os actores revelam as suas personagens a partir das dúvidas dos outros, onde o palco, na maior parte das vezes na penumbra, é uma arena difícil de ganhar, ou um buraco no qual se tropeçou e ainda não se parou de cair.

O teatro de Ingmar Bergman está lá ao fundo, à espreita, e este A reunificação das duas Coreias, que marca o regresso de Joel Pommerat ao Festival de Teatro de Almada (esta quinta e sexta-feira no Teatro Municipal Joaquim Benite), não esconde a filiação em Cenas da Vida Conjugal. Mas, no modo como o faz, atira-nos para um terreno vazio, sem armas e sem defesas, opondo, em diálogos curtos e ácidos, vinte e sete homens e vinte e sete mulheres numa luta que não admite falhas.

O título é uma metáfora, não há Coreia do Norte nem do Sul. Mas há a memória distante de que algures na fronteira entre os dois há uma zona desmilitarizada onde as famílias separadas se podem voltar a ver, à distância.

Esta imagem violenta explica porque o teatro de Joel Pommerat ensaia modos de aproximação mas sabe que eles são vãos. A excepcionalidade de Pommerat no teatro francês está no modo como se liberta de uma retórica senil e ambígua que ainda espera que o teatro possa ajudar a reescrever as vidas dos que lá vão e, por consequência, possa transformar a imagem que faz do mundo no seu inverso. “Penso em todos os elementos concretos presentes em palco (a palavra faz parte desses elementos concretos) como palavras de um poema teatral. Na verdade, entre o autor no qual me tornei e um encenador, a diferença está no modo como os gestos surgem”, escreveu ele em Théâtres en présence.

O teatro de Joel Pommerat é difícil, não porque fale de temas aos quais sejamos alheios mas porque o modo como fala de temas que não fogem do nosso quotidiano nos arrasta para a violência que pode ser a banalidade desse mesmo quotidiano. A falência moral substitui a fraqueza ética. O pudor tolhe a concretização de objectivos. A inocência perturba um processo de salvação. A vida encolhe-se perante as dificuldades. São histórias sem história, dir-se-ia, que se seguem sem necessitar de um guia. Este quadro hiper-realista, onde as personagens se atropelam como nas peças de Peter Handke (A Hora em não sabíamos nada uns dos outros, por exemplo) e se manipulam, como nas peças de Harold Pinter (por exemplo Regresso a casa), prolonga o modo como, em La Ronde, Schnitzler imaginou que o teatro pode ser a fotografia na qual o homem não gosta de se ver.

Onde antes havia um movimento circular, agora há um desfile num lugar que não leva a lugar nenhum. “Este esquisso sobre o estado das coisas e dos sítios no princípio deste século, cria balizas num território que nos é comum e dá-nos a possibilidade de reconhecer, uma vez mais, e outra vez, o exílio”, escrevia o autor no programa, na altura da peça da estreia, no início deste ano, no Ódeon – Théâtre de l’Europe, em Paris.

O espectáculo, vencedor do prémio do sindicado da crítica para melhor criação nacional, estabelece assim que o palco é, para aquelas personagens – tal como o mundo será para os espectadores – “ terra de ninguém onde nada pode existir, espaço limitado, uma passagem obrigatória onde os corpos,  por um instante, se aproximam como grãos de areia antes de deixarmos de os ver por já terem seguido o seu destino misterioso e banal caminho”. E assim, tal como das vidas de uns e de outros não guardamos senão breves memórias associadas a ideias difusas que vamos reescrevendo, também aqui cada cena, cada quadro, cada imagem tem o nome vago de uma ideia, um princípio, uma ambição: divórcio, uma parte de mim, separação, morte, dinheiro, chaves, amor, espera, guerra, crianças, memória, amizade, gravidez, valor... São modos de estar e de pensar as relações através dos quais Pommerat vai tecendo fios, por vezes enrolando as personagens, outras vezes estrangulando os espectadores.

Apanhamo-los, portanto, no caminho dessa viagem, como se fossem refugiados num êxodo ao qual não somos alheios. Este conjunto de vinhetas, de quase histórias, de fragmentos de memórias e de restos de boas lembranças, é escrito como se a palavra fosse o último reduto de esperança para estes homens e estas mulheres que não deixam de se procurar. “Um mosaico de novelas”, chama-lhe Pommerat onde, à semelhança de Cercles/Fictions (que passou pelo Festival de Almada em 2011), há “uma coerência que se constrói a partir do caos, pelas afinidades de forma ou conteúdo, de inflexões e de variações sobre o amor – qualquer que seja o sentido que dermos a esta experiência fundamental que partilhamos todos, não o encontraremos senão na sua ausência”.

Há uma mulher que diz: “Sim, amo-te mas não chega”. E o homem não compreende, diz que ela o enlouquece. Ela pede desculpa e insiste: “O amor não chega. Sim, é isso. Eu sei que é terrível, o amor não chega”. E sai. Na cena seguinte há uma tempestade. Depois acaba.

Crítico de teatro e dança

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