Adeus, senhor Bonifácio

Não vem no jornal, mas quero que saibas: isso de tentar ser um homem bom é a única coisa que importa. E se me deres a honra, podemos tentar aprendê-lo juntos. Faria o teu avô sorrir

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Rita Salomé Esteves

(Ao Manuel Eugénio, que antes de morrer me obrigou a prometer-lhe que seria um homem bom; ao Francisco, que há-de o ser)

Hoje o meu petiz começou a separar-se de mim — e sem se despedir. Aos sábados vamos sempre almoçar à pastelaria ali ao lado e acabada a refeição vou fumar à rua enquanto tomo café e leio o jornal. Este ritual, com o catraio ao lado, costumava ser uma tortura (os carros que passavam na estrada, o cão que o assustava, o jornal levado pelo vento na confusão). Mas hoje o júnior não quis ir lá fora com o sénior, preferiu quedar-se pela mesa, agarrado ao jornal, a virar folhas, arranhando palavras.

Fico aqui, não há problema, toda a gente me conhece, vai sossegado, disse o agora sénior, muito senhor de si. Resignado e sem jornal, despachei café e cigarro, enquanto combatia a pequena dor de uma nascente saudade daqueles dias em que fumar à porta da pastelaria era uma constante preocupação (os carros que passavam na estrada, o cão que o assustava, o jornal levado pelo vento na confusão) e o miúdo precisava de mim para estar a salvo.

O agora senhor Bonifácio veio para casa com o jornal imaculado, dobrado em quatro debaixo do braço, e não quis dar-me a mão a atravessar a rua. Não estava zangado — estava adulto. Há muitos anos havia um velhote em minha casa que lia e lia jornais.

O velho não me deixava pegar neles antes de os acabar e eu ficava feito bobo a mirá-lo, o que na prática consistia em olhar para as costas do jornal durante horas — e foi assim que aprendi a ler e a escrever. Sem o saber, fui-me despedindo do velho à medida que ler me deu muletas para deixar de ser apenas filho e tentar ser homem (um dia conto como correu). O velho não me deixava ler o jornal antes de o acabar; já o mais recente senhor Bonifácio recusa-se a aceitar este destino, apodera-se dos cadernos sem eu lhes ter posto a vista em cima, e prefere ficar sozinho a folheá-los quando eu vou à rua fumar. Cresce então, puto, fica lá autónomo, se é isso que queres. Mas promete só que um dia, ao leres o jornal, vais ter saudades do velho que to comprava como eu tenho saudades do velho que um dia - contrariando a sua habitual mesquinhez jornalística - se chegou à minha beira e me ofereceu o primeiro número de um novo jornal chamado PÚBLICO. Toma, isto é o que tu precisas, disse o velho, que a partir desse dia incluiu na mesada do filho a exacta quantia para comprar diariamente esse jornal. E eu - puto egoísta que era e tento não ser desde que surgiste, meu filho, e me voltaste os olhos para fora — nunca mais olhei para trás, nem sequer parei para lhe agradecer, quanto mais dizer adeus.E demorei muito a aperceber-me que o mais importante não está nos jornais mas em quem se esforça por ler o mundo.

Importante, filho, importante era o sonho que esse velho tinha de um dia ensinar o neto — com que tanto sonhava, mas não chegou a conhecer —, de um dia ensinar o neto a ler. Cresce então, puto, se é isso que queres; mas promete-me só uma coisa: que um dia vais ter uma saudadinha boba, não digo que deste tipo que em miúdo queria ser escritor e agora vem no jornal, mas daquele outro, que em adulto quer apenas ser teu pai e dar-te a mão mais um bocadinho. Se possível, uma saudadinha boba assim do tamanho que tenho pelo velho que morreu fez dez anos no dia em que ficaste a ler o jornal sozinho pela primeira vez. Não vinha lá nenhuma notícia sobre isso, pelo que sou obrigado a dizer-te aqui: era um homem bom, filho. Não vem no jornal, mas quero que saibas: isso de tentar ser um homem bom é a única coisa que importa. E se me deres a honra, podemos tentar aprendê-lo juntos. Faria o teu avô sorrir.

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