Médicos descontentes numa luta que dizem ser pelos utentes

Em frente ao Ministério da Saúde, médicos e alguns utentes manifestaram-se contra os cortes e as medidas de austeridade aplicadas aos hospitais e centros de saúde. Todos se mostraram descontentes com a qualidade do Sistema Nacional de Saúde.

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Nuno Ferreira Santos
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Ouvem-se apupos, gritos de revolta e palavras de ordem. A cor branca marca a manifestação. Podia ser um sinal de paz, mas não. É um sinal de luta. Os estetoscópios ficaram em casa, mas também não são precisos. Mesmo sem eles, conseguem ouvir-se as respirações cansadas de tantas medidas.

São muitos e muitos médicos. Quase enchem toda a Rua João Crisóstomo, morada do Ministério da Saúde, e vêm de vários pontos do país. Vêem-se bandeiras de Portugal, cartazes e há pessoas com balões, muitos balões amarelos que têm inscrito, a preto, as iniciais “SNS” - o motivo principal da luta.

Não se sabe se o ministro escuta por trás da janela, há até quem brinque com isso. Existe mesmo quem peça a sua demissão e grite que não vão desistir. Os médicos queixam-se das contratações, da “lei da rolha” e dos sistemas informáticos obsoletos. A degradação dos serviços e a crescente dificuldade de acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) por parte da populações são outras preocupações manifestadas.

Tudo está claro e visível nos cartazes e autocolantes que os manifestantes trouxeram. Apela-se à “defesa da qualidade da profissão médica” e ao “acesso para todos, e não apenas para quem possa pagar”, à saúde. No fundo, diz-se “não à destruição do SNS”.

Apesar da distância que teve de vencer, António Oliveira, cirurgião no Hospital Infante Dom Pedro, em Aveiro, fez questão de estar presente nesta manifestação, na qual diz participar em defesa do SNS. “Esta greve é o culminar da acumulação sucessiva das dificuldades que nos têm imposto cegamente nos últimos tempos, em virtude de cortes cegos para a saúde. Os médicos estão cada vez mais sobrecarregados com tarefas administrativas e informáticas, e cada vez temos menos tempo para dedicar aos doentes”, explica ao PÚBLICO. A fusão dos hospitais e dos centros de saúde, na sua opinião, são concretizadas sem qualquer planeamento e, ao concentrarem-se os doentes num só local, a capacidade de resposta dos médicos fica dificultada. “A nossa função é tratar as pessoas e nós vemos que temos dificuldade em tratar as pessoas. Não temos tempo para elas, não há capacidade, a capacidade vai diminuindo”, queixa-se António Oliveira.

Já Paula Ferreira, médica de medicina geral e familiar há 30 anos, num tom revoltado e angustiado, desabafa também que, neste momento, trabalha em condições que já não considera dignas. “Andamos há quatro anos a ser esmagados do ponto de vista salarial e laboral. Não aguentamos mais, não só nos hospitais como nos centros de saúde, não aguentamos mais as condições desgraçadas para os utentes e para nós. Os meus motivos não são políticos, são sociais.”

Apesar de esta ser uma manifestação da classe médica, também os utentes foram convidados a participar. Muitos médicos afirmam estar em luta pelos seus utentes que, cada vez mais, têm menos condições para aceder ao SNS. “É uma manifestação dos utentes, a favor de um serviço do qual os utentes têm necessidade. Nós, médicos, temos utentes que não vão às consultas e não têm dinheiro para pagar os medicamentos”, diz Graciela Simões, médica durante 45 anos e que agora integra os corpos gerentes da Ordem dos Médicos. “Não é possível que esta devastação da qualidade dos serviços passe impune pelos utentes. Isto é um furacão.”

Nesta luta "pela qualidade e dignidade dos serviços", os profissionais de saúde dizem que não são os cortes salariais que os movem, mas assumem que também essa realidade causa grande inquietação. “Neste momento, vejo colegas que não aguentam todo o processo de cortes e de novas exigências e que se reformaram antecipadamente. Deixaram os doentes para trás e foram substituídos por colegas que são pagos ao preço de empregadas domésticas”, protesta Paula Ferreira.

Apesar de já nem todos os manifestantes mostrarem sinais de esperança, a maioria diz esperar que o ministério ouça o que os profissionais de saúde têm a dizer. “Oiçam os colegas que sabem do que estão a falar. Oiçam os colegas que estão habituados a trabalhar e não estejam só escravos da ditadura da economia.”

Entre as centenas de médicos presentes, viam-se inúmeros profissionais mais jovens, que entendem que também a formação e as carreiras estão em causa. É o caso de Maria Luís Simões, interna do 2.º ano de Medicina Familiar em Coimbra, que protesta as condições de trabalho e, em especial, contra o sistema informático com que tem de lidar. “Espanha tem um sistema informático único para centros de saúde e hospitais. Dentro de Coimbra, há três sistemas informáticos nos centros de saúde e mais dois em hospitais. O que acontece? Acontece que eu não tenho acesso a uma série de informações. São as condições de trabalho a piorar e eles querem cada vez mais produtividade”, continua.

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