Quando os cães escondem as águas

Pode dizer-se que um quinto da aldeia de Fonte Arcadinha foi testemunhar ao julgado de paz de Aguiar da Beira. Num povoado onde quase todos são família, há primos que não se entendem sobre o caminho que levavam umas águas que “dantes corriam livremente”

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Testemunhas são convidadas a tentar ver no papel como corriam as águas nas terras das duas partes em confronto no julgado de paz de Aguiar da beira Miguel Nogueira

As opiniões dividem-se em dois, não fossem cinco testemunhas do lado de Maria Alice dos Santos e do marido Manuel Guerra e as outras cinco do casal Maria das Neves e Manuel Lopes. Embora todos sejam familiares de todos, as partes em conflito são primos. “Afastados”, fazem questão de sublinhar. Ao todo dirão então de sua justiça no julgado de paz de Aguiar da Beira dez testemunhas, o que, contas feitas, significa que um quinto da aldeia de Fonte Arcadinha foi chamado a vir pronunciar-se sobre “a questão” que está a ser ajuizada. A saber: afinal, onde passava dantes a linha de água que atravessa a céu aberto a terra da dona Alice? Isto antes de ser enterrada para passar a correr dentro de canos. Seguia em linha recta? Na diagonal? Foi desviada para sul pela dona Alice? O queixoso, Manuel Lopes, emigrado há 43 anos em França, só quer que tudo volte a ser “como era antigamente”: “dantes as águas corriam livremente”.

A juíza de paz Elisa Flores avisa as partes em disputa que lhes vai custar ouvir o desfile de testemunhas, mas que não podem reagir, falar, fazer-lhes sinal. “Se ficarem incomodados saem da sala de audiências”, que num julgado de paz é um compartimento de paredes nuas com uma mesa rectangular onde se sentam todos à volta. Trata-se de um tribunal que dirime pequenas acções de forma simplificada, até 15 mil euros, e que permite que as partes possam chegar a acordo, através da mediação e da conciliação, antes de avançar para julgamento. Começaram a funcionar em 2002, existem no país 25 abrangendo 61 concelhos.

Na altura de testemunharem, serão convidados a olhar para um desenho que tenta tornar visível um conflito que, no papel, se divide em três partes: são três terras, a do lado esquerdo é de Manuel Lopes e tem uma “poça” que é a origem das águas que são públicas e que servem para a rega, ao centro está a propriedade da dona Alice, acusada pelo emigrante e a mulher de encanar águas e as impedir de chegar livres ao outro lado, à sua outra terra, como foi “desde sempre”, defende Manuel Lopes. Olhar para este “boneco” onde estão desenhados os terrenos é pedir demasiada capacidade de abstracção para muitas destas testemunhas, idosos que poucas oportunidades tiveram de ir à escola. Vários continuam a falar afastando o olhar do papel que pouco lhes diz, porque eles sabem é falar das terras.

Saíamos então dali, da sala de audiências, até ao sítio que parece ser o centro da discórdia. Entra-se em Fonte Arcadinha, a cerca de um quilómetro da vila de Aguiar da Beira (distrito da Guarda), lugar onde não viverão mais do que 50 pessoas. Deixa-se o caminho alcatroado, desce-se a pé um carreiro de terra batida no final do povoado e pára-se, com vista panorâmica para o conflito, pássaros a chilrear, águas a rumorejar, à sombra de dois carvalhos: cá está, a meio, o terreno, cultivado da dona Alice, de cima para baixo tem batatas, alfaces, couves, cebolo, feijão, morango, pimentos. Está, de facto, ensanduichado entre os dois terrenos de Manuel Lopes, e é verdade que no do lado direito há uma poça aonde estão as águas para a rega (se ali afluem vindas de vários leitos ou se ali nascem também é questão de amplo debate), e do esquerdo o terreno que supostamente, depois das alterações das águas, ficou seco no seu topo por se ter deixado de conseguir regar, e que em baixo receberá tanta água que fica “como um pântano”. Nenhum dos dois terrenos do proprietário emigrado está cultivado, as ervas crescem livremente. Verifica-se que não é com esta simples visita ao local que se consegue, assim sem mais, deslindar de que lado está a razão.

A juíza de paz Elisa Flores também já foi “ao local”. Fez de tudo para que não se chegasse àquele ponto, ao julgamento, tentou por tudo evitar as oito horas que se vão suceder de testemunhas interrogadas e contra-interrogadas pelos advogados das duas partes sobre a história passada do rego onde correm as águas.

O tempo de pendência processual de Elisa Flores – que é obrigada a acumular o agrupamento de julgados de paz Carregal do Sal, Nelas e Mangualde com o de Aguiar da Beira, Penalva do Castelo, Sátão, Trancoso e Vila Nova de Paiva - não vai além dos 36 dias, mas o tempo não é tudo quando o objectivo “é pacificar”, algo que distingue este tipo de tribunal para pequenas causas de um tribunal convencional. Preferiu assim esperar seis meses para ter finalmente frente a frente as duas partes. O casal Maria Alice e Manuel Guerra, reformados de 65 anos, vivem em Fonte Arcadinha, mas Manuel Lopes só agora cá podia vir de França, a mulher não pode estar presente. “É pena”, lamenta a juíza.

O advogado de Manuel Lopes, o emigrante que pôs a queixa, começa a sessão categórico, “não vai haver acordo”, mas Elisa Flores quer que o queixoso fale, que diga o que pretende de sua viva voz e à frente da outra parte. “Os senhores são primos?”, pergunta, com ar apaziguador. “Somos primos”, responde, para logo esclarecer que não o são em primeiro grau, acrescentando que Maria Alice até foi madrinha de crisma da sua mulher.

Mas isso de laços familiares pouco interessa ao caso, parecem querer dizer as rápidas explicações de parentesco de Manuel Lopes; o que ele quer mesmo é falar do que ali o traz: “Quero a água como estava antigamente!”. “Até pode ter sido assim mas pode haver outras soluções”, sugere a juíza de paz. “Para mim não há solução nenhuma”, diz irado. “Tenha calma”, aconselha-lhe o advogado, Nuno Monteiro. “Estes senhores não alteraram linha de água nenhuma”, retorque o advogado da outra parte. Maria Alice encolhe os ombros e procura o olhar cúmplice da filha.

.No início da audiência a filha de Maria Alice, Fátima Dias, era a única a assistir, mas à medida que as testemunhas acabam de ser ouvidas tornam-se espectadoras. Ao lado da filha de Maria Alice vão ficando sentados um cunhado da mãe, que é também irmão de Maria das Neves, um irmão da mãe, que é também primo em segundo grau da Maria da Neves e um primeiro direito da mãe. São testemunhas contra os seus pais, o convívio de Fátima com estes familiares-testemunhas está reduzido à saudação. “Quem faz aos meus pais faz-me a mim”.

Comercial de profissão no Porto, Fátima Dias, de 40 anos, veio de propósito para assistir. “Venho movida pelo sentimento mais do que pelo raio do terreno. Venho para eles não sentirem que estão sozinhos”. Trouxe consigo os filhos que estão de férias das aulas, mas aos adolescentes deixou-os na piscina municipal. Apesar de não estarem a ver, sabem por alto o que se passa. “A minha mãe não me conta tudo senão era tudo à chapada”, diz Cláudio, de 17 anos. “Se os avós deixarem de falar a uma pessoa, eles também deixam”, confirma orgulhosa.

E assim como acontece à filha Fátima e ao neto Cláudio, que estão mais ligados aos pais e avós do que às terras de Fonte Arcadinha, assim se herdam conflitos, se enredam querelas sem fim. Numa visita guiada à aldeia, Fátima Dias conta porque é que a pala que a irmã quis construir numa casa aonde só vem de férias, e que lhe dá um ar moderno, fez com que as relações se cortassem com o tio que mora ao lado e que agora foi uma das testemunhas de acusação; e porque é que o primo direito da mãe, que também testemunhou contra ela, não se dá com eles por causa das delimitações de uns terrenos que têm ao lado deles.

Pendurado na parede está um cartaz que explica que nos julgados de paz pode ser “a conversar que a gente se entende”. Muitas vezes basta a diálogo, há mal-entendidos que se esfumam cara a cara, explica a magistrada. É a razão por que se diz “uma apaixonada pelos julgados de paz”, instituições a que algumas pessoas da zona já se habituaram a chamar tribunais da paz. Ainda no dia anterior, num caso entre duas pequenas empresas cujos proprietários tinham ficado de relações cortadas, a sessão acabou em acordo e em almoçarada conjunta, lembra satisfeita a juíza.

Como advogados das partes, a Miguel Costa, que defende o casal que vive na aldeia, e a Nuno Monteiro, da parte do queixoso emigrado, não lhes cabe saber como começaram os problemas, nem irmanar quem está desavindo. Mas são ambos advogados da região, Nuno Monteiro exerce em Moimenta da Beira, Miguel Costa em Fornos de Algodres, e sabem bem que o que está em causa neste tipo de casos é muito mais do que águas para rega ou palmos de terreno.

“O motivo é de paixão. É uma questão de integridade, de honra em relação à posse da terra. São propriedades de família, as pessoas fizeram sacrifícios enormes para as comprar. Há uma ligação à terra que é emocional”, nota Miguel Costa. Depois, são “coisas que vêm de trás, herdadas de pais e de avós”. Os conflitos vêm de um tempo em que ter terras agrícolas ainda era “sinal de prestígio na comunidade”, junta Nuno Monteiro, e fonte de sobrevivência. “Hoje em dia, gastam mais no processo do que o que valem as terras”, acrescenta o advogado. Bem diz Elisa Flores que é preciso atentar “à razão que nos liga à terra”.

Durante o julgamento, os dois advogados relembram-se de palavras do mundo agrícola que se vão ouvindo cada vez menos, um arreto (um terreno mais elevado), um lenteiro (uma terra húmida com erva para os animais), um cômoro (parede de suporte de terreno em socalco), um corgo (um canal). Quando este mundo de conflitos desaparecer talvez leve consigo muitas destas palavras.

“Mudou o paradigma da nossa sociedade”, afirma Nuno Monteiro, mas enquanto advogados estes litígios continuam a chegar-lhes às mãos cada vez menos. São conflitos de cabelo grisalho, pessoas na casa dos 60, 70, 80 anos. Nuno Monteiro estima que representem cerca 10% dos seus casos, no caso de Miguel chegarão a 20%. “É o típico conflito das Beiras e Trás-os-Montes”, diz Nuno Monteiro, por serem regiões onde abundam as micro-propriedades, em que as relações de vizinhança não se limitam às pessoas que moram ao lado e se multiplicam pelos campos em volta, onde acaba por se ser vizinho de toda a aldeia.

Elisa Flores lembra-se de um caso, parecido com este, em que o que aparentemente estava em causa era uma queixa apresentada por uma senhora por os cães do vizinho lhe terem destruído a horta. Pedia indemnização pelos danos. Esgaravatando se percebeu que a questão era mais antiga e que tinha a ver com ressentimentos, com o facto de o donos dos cães lhe terem, em tempos, cortado o acesso às águas. “Há muitas mágoas pelo meio”. No caso que hoje Elisa Flores está a julgar em Aguiar da Beira pode parecer que a razão da desavença são as ditas águas e o rumo que levam ou levavam. Mas mesmo não tendo, desta vez, oportunidade de chegar “à raiz do conflito”, desconfia que isso pode ser apenas o problema aparente.

Em casos como este, quando Elisa Flores nota alguma abertura ao diálogo, costuma contar uma história de quando a sua filha tinha três anos e chegou da creche. “Estão o que é que passa?”, “Estou zangada?”, “Porque é que estás zangada?”, “Estou zangada”, insistia. “Porquê?”, disse de novo a mãe. “Já não me lembro”. Não é invulgar que as pessoas já nem se recordem das razões porque deixaram de se entender, do que verdadeiramente as traz ali. "Eu pergunto e respondem-me 'Já os nossos pais não se falavam'”. Há questões de vingança, de insultos passados, conflitos entre irmãos que vêm de infância, partilhas mal resolvidas - “problemas em espiral” em que se resolvem uns e ficam outros pendentes.

Quanto mais antigo é o conflito mais difícil é de sanar. Este não parece antigo. Os factos remontam ao ano passado, altura em que Manuel Lopes diz que mudaram o rumo às águas. É só à hora do almoço, já fora da sala de audiências, que o emigrante de 69 anos deixará escapar que intentou aquela acção porque sente que os primos estão "a fazer pouco" de si. Devagarinho se perceberá que há 20 anos, ele que não se dá com três dos quatro irmãos “por causa de terras do pai”, numa mata que lhe pertencia aquele seu primo cortou-lhe uns pinheiros com uma motosserra. “Na altura não fiz nada. Eu agora ficava calado... e amanhã faziam-me outra”. “É uma questão de orgulho”, resume o seu advogado. Mas este será um caso em que Elisa Flores não chegará a descobrir que por detrás de uma questão de águas está outra de pinheiros. Será um caso em que, por mais que tente, não conseguirá trazer a paz a Fonte Arcadinha. Resta-lhe proferir uma sentença.

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