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A Acção de reconhecimento da propriedade privada sobre recursos hídricos.

Lei da Titularidade dos Recursos Hídricos

A Lei n.º 34/2014, de 19 de Junho, veio alterar a Lei n.º 54/2005. Esta lei tornava necessária uma contestada e temerária acção de reconhecimento da propriedade privada sobre recursos hídricos. Os titulares de parcelas de terrenos, situados nas margens e leitos das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, tinham de fazer prova documental de que os terrenos em causa já se encontravam na propriedade ou posse particulares desde datas reportadas ao século XIX. Para além das visíveis dificuldades de prova, a Lei n.º 54/2005 obrigava os particulares a intentar a respectiva acção judicial até um determinado prazo, sob pena de, decorrido o mesmo, não poderem ver mais reconhecida a sua propriedade sobre os terrenos em causa. Tal prazo encontrava-se inicialmente fixado em 1 de Janeiro de 2014, tendo sido mais tarde prorrogado para 1 de Julho de 2014.

Principais alterações

As alterações da Lei n.º 34/2014 são sobretudo a eliminação do prazo para o intentar da acção de reconhecimento da propriedade privada, a simplificação do regime probatório e a exigência de colaboração das entidades públicas.

As alterações são, no essencial, de aplaudir. Confirmam o que escrevemos em livro recente [1] e respondem às críticas que foram feitas. Especialmente grave era a previsão de um prazo para o intentar da presente acção, que, se fosse ultrapassado, teria como resultado a expropriação sem indemnização de propriedade privada, o que seria aliás inconstitucional. Também questões sobre aspectos processuais mal pensados para que alertámos foram esclarecidas pelo legislador, que recolheu as nossas sugestões. Da mesma forma, alguns dos aspectos de regime que se nos afiguravam desnecessários (como a forma como era tratado o usucapião) foram eliminados.

Novo regime a partir de 1 de Julho de 2014

As principais alterações foram atrás aludidas. Mas convém, para melhor informação, sintetizar as mais relevantes:

a) A eliminação do prazo para que possam ser intentadas as chamadas acções de reconhecimento da propriedade privada sobre recursos hídricos.

b) A simplificação do exigente regime probatório documental, reportado a 31 de Dezembro de 1864, 22 de Março de 1868 ou 1 de Dezembro de 1892, consoante os casos.

c) A imposição, à autoridade nacional da água, do dever de, até 1 de Janeiro de 2016, identificar, tornar acessíveis e públicas e manter actualizadas, as faixas do território que sejam consideradas como leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis – facilitando a actuação dos particulares e das instâncias decisórias quanto à identificação dos imóveis abrangidos.

Regimes excepcionais

Importa ainda dar breve nota sobre as parcelas que passarão a estar dispensadas do exigente regime probatório documental. São elas (i) as que tenham sido desafectadas do domínio público hídrico; (ii) as situadas nas margens de cursos de água navegáveis ou flutuáveis, que não se encontrem sujeitas à jurisdição da Direcção-Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias; e (iii) as integradas em zona urbana consolidada, fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, desde que se encontrem ocupadas por construção anterior a 1951.

Apreciação Crítica

Feitos os elogios, realcem-se algumas críticas devidas a que, em muitos pontos, o novo regime fica aquém do prometido e do desejado. Fica aquém do prometido, porquanto se esperava um regime de prova diverso do actual e mais facilitado, pois as excepções não bastam; a inversão do ónus da prova ou a escolha de datas mais recentes para a prova da propriedade privada eram algumas possibilidades sujeitas a ponderação.

E fica aquém do desejado pela forma como algumas excepções estão previstas, pela inexistência de uma norma de aplicação da lei no tempo, pela não admissão de nova acção quando uma anterior foi julgada improcedente por falta de elementos de prova (o que vai gerar uma situação de injustiça material para os mais diligentes), e finalmente porque se deveria ter aproveitado a oportunidade para resolver algumas questões duvidosas relativamente à legitimidade activa.

Recomendações

Por tudo isso, ousamos fazer algumas sugestões a quem de direito:

1. Alertamos os particulares de que continua a ser necessário intentar a acção de reconhecimento da propriedade privada sobre as parcelas de terreno em causa, pelo que devem contactar os vossos advogados;

2. Chamar a atenção de que a eliminação do prazo para ser intentada a presente acção poderá determinar um efeito adverso indesejado: a inércia dos particulares, levando-os a abdicar de reconhecer judicialmente a respectiva propriedade, criando riscos para as gerações futuras, visto que com a passagem dos anos a prova voltar a tornar-se mais difícil.

3. Alertar o legislador para não ignorar a presente temática no futuro, não a podendo dar por resolvida. Neste plano, desempenharão um papel decisivo os conservadores do registo predial que deverão recusar os registos sobre tais parcelas enquanto a respectiva propriedade privada não estiver reconhecida judicialmente.

 

[1] José Miguel Júdice e José Miguel Figueiredo, Acção de Reconhecimento da Propriedade Privada sobre Recursos Hídricos, 2.ª Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2014.

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