O jornalismo que temos e o jornalismo que queremos

É necessário clarificar o estatuto de estagiário, reconhecendo as suas limitações e construindo um raio de acção que permita começar uma profissão, ao mesmo tempo que se fiscaliza a acção dos órgãos para que estes não sustentem a sua actividade neste tipo de trabalhos

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Reuters

A decisão da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista é absolutamente despropositada. Proibir o estagiário de realizar qualquer acto jornalístico de base (contactar fontes, efectuar pesquisa ou tratar dados) e esperar que este desenvolva capacidades profissionais é impossível. Proibir o estagiário de contactar com o trabalho jornalístico e, simultaneamente, exigir experiência como tal para adquirir o título provisório de estagiário cria um vazio que impede a regeneração da profissão.

Isto é uma tentativa de defesa, por parte da CCPJ, às vicissitudes actuais do mercado. A defesa da profissão é louvável mas não em moldes tão conservadores que ignoram as gerações mais jovens. Mas não se ilibem os jornais. A indignação por esta medida acontece porque uma fonte de trabalho esgota-se. É impensável que os órgãos de comunicação social tenham nas redacções dezenas de estagiários, não remunerados, a desenvolver trabalho para o jornal como outro jornalista qualquer. Obviamente que o trabalho do estagiário, pela sua falta de experiência, não deve ser do mesmo nível qualitativo de quem tem anos e anos de profissão.

Um estagiário realiza um trabalho jornalístico, tal como o jornalista profissional, mas o seu trabalho não é recompensado da mesma forma. Óbvio que, da parte do estagiário, existe a vertente da aprendizagem. Mas, para o jornal, é um conteúdo como qualquer outro. Só não teve de o pagar. Multiplique-se isso por jornalistas e fotojornalistas.

A índole curricular não deve ser utilizada como desculpa para a não remuneração de conteúdos elaborados. Um jornalista estagiário, com um horário de oito horas, tem um conjunto de rotinas, produz notícias e, no fim, nada recebe. A seguir a ele, outro. E, assim, há sempre um conjunto de tarefas e um determinado nível de produção noticiosa assegurado. As instituições de defesa da profissão e os órgãos de comunicação social estão a tomar medidas perigosas e, ao extremarem posições, estão a prejudicar a fonte da sua subsistência.

Costumo dizer, meio a sério meio a brincar, que o jornalismo é um antro de ressabiados. É mesmo. Mas é porque já nasce assim. Basta ver a reacção a esta notícia. Perante uma questão que é deontológica, o comum aluno de jornalismo não é capaz de tomar uma posição. Não tem noção da ética subjacente ao jornalismo e, pior, não detém noção alguma do papel social que a profissão obriga.

Daqui a um mês vou ser licenciado. Em pé de igualdade vou ter aqueles que vi não se preocuparem com a sua formação, que não têm a noção moral e ética da profissão que escolheram e que aceitam o que for preciso para a exercer, mesmo que tal os desprenda da sua dignidade. São tempos assustadores.

É necessário clarificar o estatuto de estagiário, reconhecendo as suas limitações e construindo um raio de acção que permita começar uma profissão, ao mesmo tempo que se fiscaliza a acção dos órgãos para que estes não sustentem a sua actividade neste tipo de trabalhos. Se existe o compromisso social e a preocupação da formação profissional, porque não arranjar um modelo salarial adaptado ao estatuto de estagiário? Ou será que assim se expirava o interesse dos órgãos na formação profissional? É necessário que as universidades sejam mais activas na defesa e no acompanhamento dos seus alunos, não só na sua formação académica mas também na sua integração profissional. Já percebi a razão pela qual o jornalismo é uma das áreas com mais propensão ao suicídio: a fim de manter a sua condição está disposto a matar a profissão.

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