O piano voador de Nils Frahm

Em disco, é música para piano e sintetizador, com qualquer coisa de encantatório e circular. Mas ao vivo o alemão Nils Frahm é ainda mais arrebatador. Foi assim no festival Sónar de Barcelona. Deverá sê-lo também no dia 12 de Julho no evento Jardins Efémeros de Viseu. Ele diz que é tudo uma questão de confiança.

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O seu último álbum, Spaces, é uma ode ao prazer de estar em palco, tendo sido registado ao longo de dois anos, com posterior edição de corte-e-colagem em estúdio. Longe portanto de ser o clássico disco ao vivo
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Vimo-lo há três semanas no Sónar de Barcelona a deleitar uma assistência multinacional interessada nos novos desenvolvimentos das electrónicas, recorrendo a um piano, sintetizador analógico e processador de efeitos.

Mas poderíamos tê-lo visto na Royal Opera House. O alemão Nils Frahm é um desses músicos que tanto conquista tradicionais salões de Ópera como acontecimentos (do Sónar ao Mutek, do Primavera Sound ao Boiler Room) onde as músicas pop menos previsíveis vão sendo exibidas.

O palco parece ser o seu habitat. Aliás o seu último álbum, Spaces (2013), foi gravado ao vivo. Nele lança-se numa aventura pelo desconhecido cósmico, munido de pianos e sintetizadores, sem nunca perder a emotividade.

Vê-lo e ouvi-lo é toda uma experiência. É por isso com expectativa que se aguarda o seu espectáculo na Sé de Viseu, a 12 de Julho, no âmbito dos Jardins Efémeros, um estimulante evento multidisciplinar que acontece em Viseu de 11 a 20 de Julho, contando na componente musical com figuras como Bruno Pernadas, Dead Combo, Francisco López, Eric Leonardson Springboard, Monolake, Norberto Lobo, Orla Wren, Paus, Rauelsson, Analog Africa Soundsystem, Paulo Furtado ou Pedro Tudela.

O músico alemão vive o piano fisicamente, às vezes sentado, outras em pé, sendo solícito com a assistência, improvisando com desenvoltura. É um virtuoso das teclas, mesclando piano clássico com sintetizadores analógicos e linguagens como o impressionismo, jazz ou tecno. No Sónar fez gritar o público com as piruetas nos teclados, que tocava como se tivesse mais do que duas mãos. 

Nas suas performances há um misto de lirismo, de sonho e de arrebatamento. Não é apenas a música, é também a forma como a conduz. “Existe qualquer coisa de catártico na experiência de tocar para uma audiência”, diz-nos. “Quando existe confiança no que se está a fazer, pode-se transformar a má energia, a agressão, a frustração, e todas essas emoções negativas, em qualquer coisa bonita que valha a pena, através da transcendência que o palco proporciona. Ou então em qualquer coisa poderosa, através da experiencia.”

“A música tem essa coisa maravilhosa que é a capacidade de transformar a experiencia. É talvez a arte que tem essa aptidão mais à flor da pele, possibilitando uma espécie de magia, transformando-nos na relação connosco próprios e com o que nos envolve. Para um músico é incrível poder transformar a sua zanga ou lágrimas em qualquer coisa que as pessoas podem desfrutar. É um poder imenso.”

Artista maleável

Aos 31 anos o alemão já editou uma mão cheia de discos, inspirando-se em pianistas da clássica, em figuras do jazz como Keith Jarrett, Miles Davis ou Thelonious Monk, ou do minimalismo como Steve Reich e Philip Glass. Ao longo dos últimos anos foi ficando conhecido pela sua aproximação pouco convencional ao piano e também pelas colaborações e produções com nomes como Ólafur Arnalds, Peter Broderick ou Sarah Neufeld (Arcade Fire).

Depois dos trabalhos iniciais, a solo, ao piano, como Wintermusik (2009) e The Bells (2009), viria a editar Felt (2011), o álbum mais reconhecido, a que se seguiria Screws (2012), prenda gratuita oferecida aos admiradores quando se restabelecia da lesão num dedo.

“Se pudesse descrever o meu percurso ao longo dos anos numa palavra diria que tem sido bastante flexível. É assim que me sinto. Um artista maleável que gosta de ser confrontado com coisas novas e com novos territórios, e isso tanto acontece através do meu trabalho a solo, em colaborações ou em projectos colectivos e instalações.”

O seu último álbum, Spaces, é uma ode ao prazer de estar em palco, tendo sido registado ao longo de dois anos, com posterior edição de corte-e-colagem em estúdio. Longe portanto de ser o clássico disco ao vivo.

Na sua visão captar a magia do momento, a inspiração que nasce da confluência entre espaço e audiência, é uma tarefa impossível – “é preciso estar lá!”, diz-nos. Mas é possível recriar esse momento original de forma encenada, sem perda da espontaneidade da ocasião.

“Não sou o tipo de músico que construa uma personagem em palco. Não penso muito na roupa. Ou no que irei dizer ao público. Limito-me a tocar o piano da forma que sei e nada mais. E no entanto é sempre diferente, porque todos os espaços têm os seus segredos, a sua própria energia. Os concertos constituem uma situação específica irrepetível. Depende do equipamento que tenho, do público ou da acústica do espaço. É importante saber escutar o espaço, não o contrariar, dar-lhe o que ele necessita. Tanto posso tocar numa sala tradicional como num clube nocturno e tento extrair o melhor desses locais, ao mesmo tempo também antecipando a energia que poderei receber da assistência, porque é diferente tocar num clube ou num salão de música clássica.”

Ao lado de Peter Broderick, Hauschka, Nico Muhly ou Olafur Arnalds, é um desses exemplos de um músico que teve aprendizagem clássica mas nunca perdeu de vista outras aproximações, situando-se numa terra híbrida, nem clássica, nem pop, nem jazz, mas tudo isso. Há quem lhes chame neoclássicos, pós-clássicos, ou clássicos contemporâneos, enfim, um sem fim de qualificações que indiciam a dificuldade em situá-los.

No seu caso foi importante o encontro com Nahum Brodski, um dos últimos estudantes do compositor Tchaikovsky, seu professor de piano durante sete anos. Ele limita-se a dizer que estudar continua a ser importante, mas existem coisas que a academia e o treino não lhe propiciam. “Tive imensos empregos antes de enverar pela música a sério e ouvi e discuti música nos mais diversos locais e todas essas experiências foram importantes para aquilo que faço hoje. A validade não está em ser-se erudito ou popular, mas sim em ser-se bom no que se faz. Popular não significa que se faça má arte. Björk é popular e tem um grande valor artístico, é auto-suficiente, tem uma visão própria, e não pára de experimentar coisas novas.”

Para além da flexibilidade, diz aborrecer-se com facilidade, necessitando constantemente de novos desafios. “Tenho pânico da repetição, de saber o que vou encontrar amanhã. Numa fase da minha vida fui carteiro e o momento mais excitante do dia era jogar na lotaria, daí que tenha decido que necessitava de algo diferente”, ri-se, argumentando que está sempre a reagir ao que fez anteriormente. “Se fiz um álbum clássico, quero que o próximo seja o oposto. Se trabalhei sozinho, quero da próxima vez estar rodeado de pessoas. Gosto de contrariar as minhas expectativas e dos outros, embora as respeite. Esperam de mim bons espectáculos e que lance novos álbuns. De alguma forma trata-se de transformar essas expectativas em motivações para mim próprio.”

Astronauta na sua nave

Quem o ouve em alguns discos, onde compõe peças intimistas para piano, poderá pensar que os seus concertos são serenos. Mas não é bem assim. No final do espectáculo do Sónar transpirava abundantemente. “Sempre gostei de coisas físicas, de manusear com as mãos, de trabalho braçal”, ri-se. “Quando deixar a música, quem sabe, talvez possa trabalhar numa quinta.”

Para já a sua actividade é a música e não tem razões para se queixar. “Alguns dias são passados entre hotéis, táxis e aeroportos, mas também há dias de folga em viagem e aí pode ser que alguém nos leve a conhecer a cidade, ajudando-nos a percebe-la de outra forma, levando-nos a descobrir paisagens, edifícios ou pessoas inesperadas. Às vezes é possível aprender com a história dos locais e conhecer também pessoas que nos inspiram. Essa é a parte melhor desta história. Isso e os concertos, claro.”

No Sónar vemo-lo envolvido por sintetizadores e por uma grande piano, parecendo um astronauta da NASA rodeado pelo equipamento da sua nave. As mãos parecem voar, impulsionando crescendos ou fendas melódicas, manejando as dinâmicas quase como se fosse um DJ, explorando as paisagens mais rítmicas do seu repertório. Às tantas vira-se para a audiência e afirma, para surpresa geral, que tem de se ir e que o próximo tema será o último.

A audiência protesta. Deseja mais. E Nils Frahm acalma-os: “é a última, mas não se preocupem, é longa!”, e lança-se ao último tema, cerca de meia hora de virtuosismo e de hipnose, onde cada nota parece mais essencial que a anterior. Em palco, ele salta freneticamente do piano para o sintetizador e vice-versa, propondo transições inesperadas e lentas progressões que se sucedem em catadupa, com o som esvoaçando pelo imenso auditório, com ele a tocar o piano como se fosse um instrumento de percussão, levando a assistência ao clímax.

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