Ainda e sempre a extinção do TC

A ideia da “unicidade judicial” é antiga, mas perigosa para a democracia.

Há também, no plano global, dois acontecimentos políticos em curso, extremamente preocupantes e com consequências totalmente imprevisíveis. O primeiro, a crise iraquiana; o segundo, os desenvolvimentos políticos na Ucrânia, em especial depois desta cimeira europeia. Não será hoje que voltaremos a elas. Registem-se tão-só para não nos iludirmos com as óbvias limitações do paroquialismo do nosso debate doméstico.

2. Postas as coisas na sua proporção, importa voltar ao Tribunal Constitucional. Não é a primeira, nem a segunda – e, está visto, não será decerto a última vez –, que trato aqui o tema, já com ressaibo “dinossáurico”, da extinção do Tribunal Constitucional. Porque é um tema recorrente, perdoe-se-me o tom de alguma impaciência e veemência.

3. Quem acompanha estas linhas, sabe bem que tenho sido fortemente crítico da linha jurisprudencial seguida pelo Tribunal Constitucional. Não posso estar mais em desacordo com a corrente jurisprudencial que tem prevalecido no Tribunal, designadamente em matéria orçamental e no que diz respeito à interpretação da Constituição no quadro espacial da nossa inserção europeia e em tempo de grave crise financeira (que incluiu um resgate). Tenho, aliás, repetido, numa fórmula criteriosamente escolhida, que a posição dominante no Tribunal é uma posição essencialmente conservadora. Também tenho, aqui e alhures, reiterado que a subsistência de uma tensão institucional entre o binómio executivo-legislativo e a jurisdição constitucional nada tem de original nem sequer de dramático. Mesmo que essa tensão não seja nem desejável nem salutar, ela faz parte da vida política e constitucional das democracias ocidentais que são Estados de direito. E, insiste-se, surge de tempos a tempos, em todos os ambientes constitucionais, especialmente quando existe um ímpeto reformista particularmente intenso.

4. É estranho, porém, que a polémica à volta das decisões do Tribunal Constitucional desembarque e desemboque na aspiração cândida de criar uma secção constitucional no Supremo Tribunal de Justiça. E é ainda mais estranho quando se ouve por aí que assim imitaríamos os Estados Unidos, onde não há Tribunal Constitucional (que, todavia, existe na Itália, na Alemanha, na Áustria, na Espanha, até na jacobina França, etc.). O que esses pretensos admiradores do sistema norte-americano parecem ignorar é que o Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos tem plena legitimidade democrática (nomeação pelo Presidente e confirmação pelo Senado) e que os juízes federais (não apenas os do Supremo), apesar de nomeados vitaliciamente, podem ser objecto de um processo de remoção política (raríssimo e em tudo paralelo ao processo de “impeachment” presidencial). E também esquecem que os juízes federais estão protegidos por uma cláusula de salvaguarda (inscrita na Constituição) que lhes assegura o estatuto remuneratório contra quaisquer alterações legislativas (em especial de índole orçamental). E que são apenas nove. E que detêm o poder de decidir quais as causas que aceitam julgar e quais aquelas que, por acharem que não dispõem de relevo ou dignidade, podem pura e simplesmente recusar-se a julgar.

Mas o que eles principalmente olvidam é que o Supremo Tribunal Federal norte-americano, que pela sua configuração na Constituição em tudo se assemelha a um Tribunal Constitucional, não trata apenas das matérias constitucionais, mas cura de todo o tipo de matérias (criminais e civis, por exemplo). E que, portanto, a aceitar o termo de comparação que querem fazer, mais depressa deveriam advogar a extinção do Supremo Tribunal de Justiça e a integração de parte das suas competências no Tribunal Constitucional do que o contrário.

5. No quadro das modernas democracias poliárquicas, muito marcadas pela desterritorialização do poder, por uma menor capacidade directiva e impositiva dos poderes legislativo e executivo, por um enfraquecimento relativo do direito de voto (que foi pensado para um quadro político de representação territorial), o poder jurisdicional ganha peso e ganha relevo. Torna-se cada vez mais um regulador político-constitucional de primeira grandeza. E, por isso, é fundamental que possa ter legitimidade democrática e que possa ter mecanismos adequados de responsabilidade e de responsabilização. Em termos constitucionais, o problema não é hoje o da legitimação e responsabilização do Tribunal Constitucional – por mais que esta possa ser aperfeiçoada e melhorada. E pode. E deve. O problema é justamente a legitimação e responsabilização dos restantes tribunais e, em particular, dos tribunais supremos – que, dado o lugar central que ocupam nas sociedades políticas hodiernas, precisam de arejamento democrático e de canais de comunicação democrática.

6. Quanto mais os tribunais – mesmo os de instância superior dentro de cada ordem – forem plurais, abertos e diferenciados nos modos de selecção, recrutamento e formação dos magistrados, mais independentes (e, por conseguinte, mais legítimas) serão e aparecerão as suas decisões. A ideia da “unicidade judicial” em que todos os juízes pertencem a uma só classe, com uma só carreira, governados por um só Conselho, é uma ideia antiga, mas perigosa para a democracia. É totalmente contrária ao devir dos tempos e ao lugar que o poder jurisdicional deve ocupar nas sociedades políticas contemporâneas. Por mais sedutor que possa parecer, esse não é o caminho.

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