E não me fez mal nenhum

Desejar que os outros carreguem a mesma dose de infelicidade que nós, ou que padeçam dos mesmos males que sofremos, é o caminho mais fácil para não termos de olhar para nós próprios

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Rita Salomé Esteves

Uma das frases preferidas dos portugueses é “E não me fez mal nenhum”. Dá para tudo: “Quando eu era pequeno nem sapatos tinha e não me fez mal nenhum”, diz o pai, de pés ainda feridos, chocado com o preço dos ténis que o filho pede. “Eu comecei a trabalhar aos sete anos e não me fez mal nenhum”, retorque outro, quando a sua cria chora por querer continuar a estudar, em vez de começar a ajudar a família na padaria às 4 da manhã. “Eu levei porrada de criar bicho e não me fez mal nenhum”, asseveraria em tribunal um terceiro encarregado de educação, caso em Portugal os adultos que batem em crianças fossem levados à justiça.

Por vezes as pessoas que sofrem coisas que fazem mal conseguem aguentar o mal sofrido – e o preço que pagam é crerem que eles, os resistentes, são a bitola do mundo. É o problema daquele “me” a meio da frase: lá porque algo não muito agradável não fez mal ao senhor A não invalida que seja uma chatice para os senhores B a Z.

Em princípio levar com um ferro na cabeça não conduz à felicidade; no entanto, eu conheço um velhote a quem assentaram com um e ele nunca reclamou – embora possamos culpar o mutismo de que agora padece à pancada que levou. O amigo levava reguadas na escola e isso não lhe fez mal nenhum? Óptimo. Mas tem de perceber que o mundo não é composto apenas por si e que a experiência dos outros pode ser diferente. Depois a gente desconfia do “nenhum”.

Há pouca coisa ao cimo da terra que não faça mal “nenhum”. Mesmo as coisas boas têm algum defeito, fazem, vá, um malzinho benigno: o amor torna-nos estúpidos durante seis meses; a dieta que nos emagrece, se levada ao extremo, é moça para nos provocar tonturas; a literatura, que tanto nos ensina, quando tornada absoluto que substitui a interacção humana, fará de nós pequenos monstrinhos de egoísmo incapazes de lidar com o outro. Tudo traz um pouquinho de mal consigo. Adicionem o “me” ao “nenhum” e temos uma proposição com elevado índice de suspeição revanchista: um monumento ao ressabiamento que graça pelas almas da pátria. Quem profere os “E não me fez mal nenhum” que povoam o nosso mundo mental não tem – ou não quer ter – a clara noção do mal que o que experimentou lhe produziu, porque isso implicaria olhar para si e admitir que algures lá atrás deixou de poder ser o que sonhara.Tem o direito à amargura; mas não a exigir que os outros amarguem.

Lembro-me por vezes do sueco que entrevistou Cunhal e que, quando este vituperava contra os ricos, lhe retorquiu que no seu país não se desejava mal a quem tivesse dinheiro, esforçavam-se era para que os pobres também o tivessem. Desejar que os outros carreguem a mesma dose de infelicidade que nós, ou que padeçam dos mesmos males que sofremos, é o caminho mais fácil para não termos de olhar para nós próprios, não aquilatar o que nos fez mal e não nos esforçarmo-nos por ter uma vida melhor. Mas não se guiem por mim; esta é apenas a opinião de um tipo que levou uma vida pacata, sem desastres de maior, que não espera muito de si mas acredita nos outros, e que não sendo crente teve uma educação católica — e não lhe fez mal nenhum.

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