Caso Vincent Lambert: o drama de ausência de um Testamento Vital

Em Portugal, como se decidiria o caso?

A França tem acompanhado de perto o drama de Vincent Lambert, enfermeiro de 38 anos que, em 2008, por causa de um acidente motorizado, sofreu um grave traumatismo craniano que o tornou tetraplégico.

Desde há tempos que se considera estar em estado vegetativo persistente/permanente (EVP), sofrendo de lesões cerebrais graves e irreversíveis. Nestas circunstâncias, o médico da equipa que o acompanha tinha já colegialmente decidido cessar a alimentação e hidratação forçadas (AHF) que o mantinha em vida. Porém, em virtude de divisões na família de Lambert, o assunto foi parar aos tribunais franceses e, finalmente, ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (para os aspectos jurídicos, cf., por ex., F. Mota, PÚBLICO, 27.06).

Neste texto, importa-me sobretudo salientar que Lambert, infelizmente, não deixou qualquer Testamento Vital, ou uma “pessoa de confiança”, como chamam os franceses ao nosso Procurador de cuidados de saúde. Assim, Lambert ficou entregue às divisões familiares e aos tribunais. Finalmente, provou-se que, por variadas vezes, ele afirmara não querer que lhe prolongassem artificialmente a vida se ficasse em EVP.

Em França, de acordo com a chamada lei Léonneti de 2005, a atitude dos médicos estaria justificada, por se entender que se trataria de obstinação terapêutica, destinada apenas a manter artificialmente uma vida que já teria morrido de acordo com a natureza e, além do mais, irreversivelmente condenada a essa morte, para já não falar dos testemunhos indirectos sobre a vontade do próprio.

Os pais, opondo-se ferozmente a que se retire a AHF, deixando-se assim morrer Vincent - embora com o máximo de medidas de conforto, de modo a evitar qualquer sofrimento possível -, tendo por trás uma associação religiosa fundamentalista, dizem que Vincent é apenas um deficiente e que é essa sua vulnerabilidade de deficiente que possibilita que lhe queiram “tirar a vida”. Pelo menos uma associação de deficientes veio dizer o mesmo, o que é claramente demagógico. Para além disso, já ouvi a mãe de Vincent dizer que ele não estava em EVP, mas em estado de consciência mínima, negando assim o que os especialistas médicos nomeados pelo Conseil d’État apuraram.

Por outro lado, alguns defensores da despenalização da morte assistida têm dito, como noutras circunstâncias semelhantes, que Vincent iria ser vítima de um fim de vida terrível, destinado a morrer à fome e à sede. Nova forma de demagogia, parece-me, pois Vincent não está em condições “normais” de saúde, à espera das nossas refeições habituais. Sabemos mesmo que, nalgumas circunstâncias, essa AHF pode até ser prejudicial, por o organismo já não conseguir absorvê-la. Pessoalmente, penso que haveria menos possibilidade de eventual sofrimento através da eutanásia, e que esse procedimento poderia também acarretar menos sofrimento para os familiares, que vão assistir ao lento definhar do ente-querido. Mas esta é já outra questão.

Para algumas vozes das igrejas, como Vincent não está em estado terminal e a AHF é considerada um cuidado básico e não um tratamento, não se devia proceder como o Tribunal decidiu. Mas a vida biológica humana deve ser mantida a todo o custo, quando é apenas a mão humana a impedir o que a natureza já teria decidido há muito? O morrer implica avaliações muito íntimas e variadas sobre as quais o Estado devia ter o pudor de não se pronunciar, limitando-se a respeitar as convicções e regulamentar o regulamentável no processo de morrer.

Em Portugal, como se decidiria o caso, mesmo com Testamento Vital de recusa? Note-se que o modelo que saiu há pouco exige o seguinte: “Inconsciência por doença neurológica ou psiquiátrica irreversível, complicada por intercorrência respiratória, renal ou cardíaca”. E se não houver “intercorrência”? E, noutro lado, fala-se de “Não ser submetido a medidas de alimentação e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural de morte”. Quantas interpretações diversas pode dar esse “apenas”?

Reflictamos sobre o epitáfio de Nancy Cruzan – o caso de Nancy tornou-se famoso nos EUA por ter sido o único do género a chegar ao Supremo, depois de a jovem mulher ter estado quase oito anos em EVP (Eluana Englaro esteve dezassete!):

Born: July 20, 1957

Departure: January 11, 1983 [dia do acidente de automóvel que a veio colocar em EVP]

At Peace: December 26, 1990 [dia em que morreu verdadeiramente, depois de retirarem a AHF, por ordem do Tribunal].

Docente Aposentada da Universidade do Minho, autora de Testamento Vital. O que é? Como elaborá-lo? (laura.laura@mail.telepac.pt)

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