O direito do “hipster” de drogas ao Xanax da sua avó

Eu vou passar ao lado do revivalismo da heroína e registo apenas com penosa curiosidade a capacidade do ser humano em tornar SEMPRE uma ideia benévola numa tragédia tamanho Saltillo

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Srdjan Zivulovic/REUTERS

Vai uma grande confusão na nossa necessidade exterior de conforto. Até há bem pouco tempo, sujeito que tivesse honra em si mesmo enfrentava a sagaz matilha de enfermos que compõe a fila de utentes de uma farmácia munido de uma receita médica e uma sobredose de vergonha: queria uma benzodiazepinazinha por causa da ansiedade, um hipnoticozito à conta da insónia, um anti-depressivito derivado ao défice de furor que lhe tolhia a alegria pela manhã.

O português é capaz de aguentar muito tempo as suas intransigências e preconceitos, mas quando as abandona é como polícia de choque em dia de manifestação: ninguém os pára. De onde, subitamente, o cidadão, ao encontrar-se na farmácia tendo em fim a reposição do stock de drogas legais, abandonou a vergonha e passou a dar grandes abraços aos companheiros de desventura janada: “Ah, tu andas a Alprazolam? Também aprecio”. “O quê, só 0,5 miligramas? Fraquinho, tens de experimentar o dobro da dose”. “Eu dou no Morphex”, diz um vanguardista, para enfado do hipster que prefere o Xanax da sua avó. Nos anos dourados da drogaria medicamente assistida, que agora terminam, ninguém precisava de receita para, digamos, se dedicar à gnoseologia numa drageia de Quetiapina.

Não pretendo armar-me em São João da Cruz, que só de pensar no Senhor alucinava, mas agora, parafraseando o poeta, vem aí uma viração danada: nos EUA novos e velhos, mancos e atletas, deprimidos e histriónicos, feios e bonitos, trocaram a doce oxicodona pela velha e alquebrada heroína.

Obama, como sabemos, quer que toda a gente tenha acesso a saúde o mais barata possível; em simultâneo, desagrada-lhe manter uma legião de drogados legais, pelo que mandou apertar o controlo da prescrição de opiáceos legitimados pelas farmacêuticas. Parece boa ideia, não parece? Só que toda a boa ideia tem um problema: por norma é posta em prática por humanos, que é quando se torna em tragédia.

No caso, os antigos drogados legais americanos, que pacatamente adormeciam nos seus postos de trabalho aquietados pelos seus comprimidos, viram-se apiedados das suas sedas medicamente prescritas: não havia mais receitas para ninguém. Ao mesmo tempo, a marijuana, agora legal, tornou-se mais cara.

Os cartéis, gente informada, aumentaram a produção de heroína e, numa admirável demonstração de gestão de produto, aplicaram um marketing agressivo: puseram mais e mais passadores às portas das farmácias, vendendo heroína a quatro dólares a dose. Primeiro as velhinhas “snifavam”, depois, talvez por nostalgia, passaram para a agulha. As mortes por heroína aumentaram vertiginosamente. Lembram-se da década de 80? Tínhamos todos uma “t-shirt” de Michael Jordan porque os americanos as usavam. Não começámos a comer pizza por homenagem à madre língua latina — as porque a vimos nos Simpsons. O que acontece é que o português não resiste ao americano — pelo que mais dia menos dia a moda vai pegar por cá.

Eu, que tenho pavor a agulhas e um desvio do septo nasal que me torna um incapaz no uso de drogas duras, vou passar ao lado do revivalismo da heroína e registo apenas com penosa curiosidade a capacidade do ser humano em tornar SEMPRE uma ideia benévola numa tragédia tamanho Saltillo.

Pelo que, antes que as nossas avós desatem a chutar cavalo pelas esquinas e os Peste e Sida encetem uma digressão de regresso, rogo ao nosso governo que páre com esta chatice de controlar as receitas do povo, em que tanto se empenhou nos últimos tempos, e nos deixe drogarmo-nos legalmente. É que prefiro o “hipster” de drogas a curtir o mar calmo do Xanax da sua avó, e os Peste e Sida (quer dizer, a banda) mortos e enterrados, que o oposto.

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