A irresistível ascensão da extrema-direita em França: crónica de um desastre anunciado

Contrariamente ao que sucedeu na Holanda onde o partido de extrema-direita, dado como vencedor nas sondagens, não conseguiu senão o terceiro lugar, em França, a Frente Nacional de Marine Le Pen alcançou a vitória que lhe havia sido ex-ante largamente protagonizada (protagonização, essa, que não lhe é totalmente estranha, já que a visibilidade, proporcionada pelos media e garante da audiência alargada destes, pode ser considerada como uma poderosa alavanca de voto).

Falar em vitória num universo eleitoral em que houve cerca de 57% de abstenção e 4% de votos brancos e nulos pode parecer abusivo, para além de contribuir para dissimular os verdadeiros ganhadores destas eleições europeias: os abstencionistas, os quais enviam uma mensagem política de alta intensidade: a inutilidade de exprimir a sua vontade no âmbito de instituições supra-democráticas, prontas a “contorná-la” na primeira ocasião.

Lembre-se, a este propósito, o facto de “o não” da França no referendo de 2005 ao Tratado Constitucional (na sequência de um intenso debate democrático) ter sido contornado pelo Tratado de Lisboa, negociado pelo Conselho Europeu em Junho de 2007, que retoma inúmeras disposições do Tratado Constitucional europeu rejeitado, não só pela França, mas também pela Holanda.

Torna-se, por conseguinte, necessário, relativizar o voto na extrema-direita, não só porque ele representa 25% dos cerca de 40% que se exprimiram em favor de uma força política (o que lhe confere a sua verdadeira dimensão de 10%), mas também porque terá havido nas últimas eleições (europeias) uma canalização mais importante do voto “frentista” para a direita de Nicolas Sarkozy.

Tal relativização carece, no entanto, ela própria de ser relativizada. Primeiro, porque a extrema-direita é, de facto, uma força em França – e o resultado da primeira volta das eleições presidenciais em 2012 que se saldaram por um voto de 18% na candidata da extrema-direita, é sintomático a este respeito.

Em segundo lugar, porque o voto neste partido que tem as suas origens nas mais profundas tradições xenófobas e “pétainistas” da França, é assustador mesmo com uma fraca votação, a fortiori quando os eleitores o propulsam para um lugar de destaque na vida político-social francesa.

Dito isto, e, não sendo esta situação nem nova nem completamente imprevisível, é difícil ouvir sem descrença as reacções consternadas vindas dos partidos da alternância, ou seja a direita de direita e a esquerda de direita (para usar a designação do filósofo esloveno Slavoj Zizec).

Com efeito, se tivermos de designar os grandes culpados da actual situação de polarização do eleitorado francês na extrema-direita, é forçoso reconhecer que teremos de apontar sem a mínima hesitação as políticas de austeridade que uns e outros têm vindo a impor de forma cada vez mais intensa a partes crescentes da população.

Com uma taxa de desemprego em aumento e que apenas oficialmente é de 10% da população activa, sendo que atinge os 23% para os jovens, e pode ultrapassar os 30% em zonas ditas “desfavorecidas” (antecâmaras ardentes da explosão social) as políticas francesas decretam cada vez mais precariedade e exclusão, revelando-se crescentemente incapazes não só de as debelar como também de as atenuar.

E cada vez mais perceptível para a população – e particularmente após a crise dita das dívidas soberanas – a ligação entre as instituições europeias e a situação em que se encontra quotidianamente confrontada, não só em termos de desemprego, precariedade, exclusão e deterioração das condições salariais, mas também por via da ameaça potencial destes; e também por via da erosão do reputado modelo social francês crescentemente mal tratado.

Vendo sucessivamente desmentida por Nicolas Sarkozy e François Hollande a crença, neles depositada, de poder inflectir os ditames de Bruxelas, parte do eleitorado voltou-se para a extrema-direita que preconiza abertamente romper com a base de subordinação a esses ditames. É necessário ver no voto “frentista” em França, a mensagem clara que ele pretende transmitir: a rejeição da Europa na sua actual configuração, que é também a sua configuração real.

Esta postura de rejeição e a cristalização no voto da extrema-direita que lhe está associado, terão vocação para se desenvolver. Com efeito, foi um governo francês “chocado” mas em aparência profundamente autista que, logo a seguir à proclamação dos resultados, anunciou como remédio à situação por eles revelada... a aceleração das reformas em curso, que consagram o mais brutal pacote de austeridade no próximo triénio.

Destinada, nomeadamente, a financiar a diminuição do custo do trabalho (contra hipotéticos compromissos de aumento do emprego), mas incidindo sobre elementos que solvibilizam a procura (salários, transferências sociais, comparticipações na saúde...) a nova austeridade configura uma situação de crescimento anémico ou negativo, gerador de mais desemprego, mais precariedade, mais exclusão e... mais aproximação à extrema-direita.

Profundamente autista, a atitude do governo (socialista) francês é também suicidária para governantes que retiram a sua legitimidade do voto dos cidadãos no espaço nacional. Mas é igualmente reveladora do profundo enfeudamento aos ditames de Bruxelas (ou mais precisamente da Alemanha) e, portanto, à incapacidade (ou vontade) de inflectir esses ditames, aos quais continua a sacrificar o emprego, as estruturas sociais e o que resta do tecido industrial.

Neste contexto, a esquerda de esquerda foi por assim dizer marginalizada. A sua estratégia política de refundação solidária da Europa, ou não foi ouvida, ou não foi compreendida, ou foi julgada inatingível. Talvez porque a tarefa de refundar a Europa possa parecer hercúlea, comparada com o horizonte de vidas pautadas pelo sofrimento e a ansiedade da Europa real.

Economista, lecciona economia portuguesa na Universidade de Paris IV – Sorbonne; autarca na região de Paris

 

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