Jean-Claude Juncker, um presidente quase acidental e o último dos federalistas europeus

Não gosta de excessos de liberalização, tem preocupações sociais e é mesmo considerado “o mais social-democrata dos democratas-cristãos”.

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Jean-Claude Juncker REUTERS/Ints Kalnins

Até há menos de um mês, muito pouca gente parecia realmente acreditar que Jean-Claude Juncker, ex-primeiro ministro do Luxemburgo, viria a ser escolhido para suceder a Durão Barroso enquanto presidente da Comissão Europeia e assumir aquele que é considerado um dos cargos mais difíceis do mundo.

Quase acidental, a sua nomeação nesta sexta-feira pelos líderes da União Europeia (UE), resultou de uma dinâmica criada pelo Parlamento Europeu (PE) que se foi tornando progressivamente incontrolável até ao ponto de deixar os Governos dos 28 encurralados e sem qualquer alternativa. Ironicamente, foi a oposição quase histérica de David Cameron, primeiro ministro britânico ao luxemburguês – largamente interpretada como uma batalha contra a Europa – que acabou por ser o elemento determinante para a sua confirmação.

Tudo começou com a forma como o PE interpretou uma disposição do Tratado de Lisboa (de 2009) segundo a qual o presidente da Comissão Europeia é escolhido pelos líderes dos 28 países membros – se necessário por maioria qualificada – tendo “em conta” o resultado das eleições europeias, e aprovado por maioria absoluta dos eurodeputados (376 em 751).

Na leitura do PE, esta disposição dá-lhe o direito de indicar o leque de candidatos sobre os quais os líderes poderão deliberar.

Grande parte dos Governos discorda em absoluto desta interpretação, considerando que o poder de escolha é seu, mas nenhum teve o cuidado de o dizer enquanto ainda teriam uma possibilidade de travar o processo. Como é hábito na UE, enquanto os problemas não se tornam prementes não existem.

Várias capitais acreditavam de todos os modos que depois das eleições europeias de 25 de Maio, logo resolveriam a questão.

O que é certo é que os socialistas (o segundo maior grupo parlamentar) avançaram logo em Novembro com a indicação do seu candidato à sucessão de Barroso escolhendo o alemão Martin Schulz, presidente cessante do PE, e prometendo que se ganhassem as eleições de Maio, seria ele o próximo presidente da Comissão.

Os partidos do PPE (centro direita) resistiram enquanto puderam a entrar no jogo, mas acabaram por perceber, no início do ano, que estavam em risco de ficar para trás.

Acima de tudo, Angela Merkel, chanceler alemã (do PPE), percebeu que tinha um sério problema em mãos: se os socialistas ganhassem as eleições europeias – como as sondagens de então permitiam acreditar – teria de aceitar que Schulz seria o sucessor de Barroso. O que significaria que a chanceler democrata-cristã teria de nomear um socialista enquanto futuro comissário europeu alemão. Dois desfechos impensáveis para Berlim.

Merkel decidiu desde logo que qualquer solução seria melhor do que Schulz na Comissão. Vários outros líderes pensavam o mesmo, tanto mais que, enquanto presidente do PE, o alemão não fez grandes amigos entre os 28.

Muito rapidamente, o PPE chegou à conclusão de que o único adversário capaz de enfrentar o candidato socialista seria “Jean-Claude”.

Reformado da política no fim de 2013, Juncker reúne um sem número de qualidades únicas. Uma delas é a sua experiência e conhecimento ímpares dos meandros comunitários adquiridos durante uma longa carreira “europeia” enquanto ministro das finanças desde 1989, cargo que acumulou desde 1995 e até ao fim de 2013 com o de primeiro ministro e durante oito anos com a presidência do eurogrupo (os ministros das finanças do euro). Este percurso permitiu-lhe participar e influenciar todas as grandes etapas da construção europeia desde a queda do muro de Berlim, arbitrar um sem número de crises e trabalhar com todos os grandes líderes desde então – de François Mitterrand a Helmut Kohl – de tal forma que é hoje considerado uma espécie de “sábio” europeu.

Juncker tem igualmente a vantagem de ser apreciado pela generalidade dos Estados – Portugal incluído – e de não ter verdadeiros anticorpos em nenhum – com a excepção notória do Reino Unido. O luxemburguês também não é nenhum ayatollah ideológico, não gosta de excessos de liberalização, tem preocupações sociais e é mesmo considerado “o mais social-democrata dos democratas-cristãos”.

O facto de o Luxemburgo estar geograficamente encravado entre a França e a Alemanha – tendo aliás sido um eterno terreno de batalha entre ambas – deu-lhe por outro lado um conhecimento profundo da cultura, língua e sensibilidade dos dois vizinhos. Por essa razão, Juncker foi durante 25 anos um mediador e apaziguador frequente das quezílias entre os dois colossos cujo entendimento é central para qualquer acordo europeu.

É certo que alguns líderes consideram que o seu tempo já passou, sobretudo aqueles – como o Reino Unido, os países escandinavos ou os de Leste – que não percebem verdadeiramente a lógica integracionista dos fundadores da UE de que Juncker é o último grande defensor.

Vários também apreciam pouco a familiaridade quase paternal com que o luxemburguês os trata e, mais ainda, o que muitos consideram o seu mau gosto de ter opiniões próprias e de as exprimir sem estados de alma, incluindo quando se trata de criticar a obsessão da Alemanha com a austeridade imposta a Portugal e Grécia.

Os seus adversários concentram as críticas sobretudo na sua “proximidade” com o cognac, de que, contam algumas delegações, Juncker usou e abusou durante as longas noites de negociações no Eurogrupo para a aprovação dos programas de ajuda a Portugal, Grécia e Irlanda.

Em plena campanha eleitoral para as europeias, no entanto, a grande vantagem de Juncker para Merkel era o facto de ser totalmente fluente em alemão – uma das três línguas oficiais do Luxemburgo – e poder assim enfrentar, e eventualmente neutralizar, Schulz nos debates políticos na Alemanha.

Juncker, de 59 anos, começou por resistir com grande firmeza à indigitação enquanto candidato oficial do PPE.

O cargo em si nunca o entusiasmou, de tal forma que já se tinha dado ao luxo de o recusar quando lhe foi oferecido de bandeja pelos líderes europeus em 2004, o que permitiu a ascensão de Durão Barroso.

A recusa deveu-se sobretudo à complexidade da função à frente da única instituição que tem o poder de apresentar propostas legislativas ao Conselho de Ministros e ao PE e de impôr o cumprimento das decisões, e que é um colosso de 30 mil funcionários sujeito a mil pressões quotidianas dos Governos e que se tornou no bode expiatório perfeito para todos os problemas nacionais.

A pressão do PPE foi tal que o luxemburguês acabou por aceitar a indigitação, mais por dever do que por convicção – o que se tornou aliás patente durante a campanha eleitoral.

A expectativa de muitas capitais na altura era que com a entrada previsível de mais de 100 deputados eurocépticos e extremistas, e com as sondagens a darem o PPE e os socialistas com resultados quase iguais, os dois maiores grupos teriam de se aliar para formar uma maioria parlamentar estável para a legislatura, incluindo para a eleição do presidente da Comissão. O que levaria, esperava-se no PPE, a que os respectivos candidatos se anulassem mutuamente devolvendo aos Governos o poder de escolher o “seu” candidato, que seria um terceiro nome consensual para as duas famílias políticas.

As coisas não correram exactamente como esperado. O PPE conseguiu mais 30 deputados do que os socialistas (221 contra 191), o que tornou claro que o sucessor de Barroso teria necessariamente de ser um democrata-cristão. O PE exigiu de imediato Juncker.

David Cameron opôs-se terminantemente, com o apoio inicial da Suécia, Holanda e Hungria, tanto pelo federalismo europeu claramente assumido pelo luxemburguês, como por uma recusa de dar ao PE o poder de escolher o presidente da Comissão que, do ponto de vista destas capitais, pertence aos Estados.

Para estes países, Juncker e a sua defesa do aprofundamento do projecto europeu constitui uma postura incompreensível que não faz parte da sua cultura nem da sua geração.

O luxemburguês, que costuma lamentar que “a Europa já não faz sonhar”, afirmou recentemente que se a actual geração de líderes “não conseguir que a integração europeia se torne irreversível, os que daqui a 20, 30 anos já não saberão quem era Hitler ou Estaline não terão a força suficiente para o fazer”.

Os britânicos acreditaram então – erradamente – que a Alemanha estava do seu lado, e deram largas a um discurso cada vez mais virulento contra Juncker, “homem do passado” que, diziam, não permitiria a Londres alterar – para reduzir – a sua ligação com a UE e submeter o seu novo estatuto a referendo até 2017, como prometido por Cameron.

É verdade que depois das eleições europeias Merkel começou por hesitar, mas foi de imediato trucidada pela imprensa nacional, uma das poucas que levou a sério toda a ideia dos spitzenkanditaten – ou candidatos-chefes de fila dos partidos – e a promessa de que o indicado pela família mais votada seria o sucessor de Barroso.

A expectativa dos supostos aliados de Londres era que o próprio Juncker decidisse abandonar a corrida em nome da união da grande família europeia.

A ironia da história é que foi sobretudo a oposição quase histérica de Cameron que provocou a actual situação em que os líderes ficaram de mãos atadas: não só o luxemburguês não abandonou a corrida, como o PE endureceu a sua posição, avisando que não aceitaria nenhum candidato que não tivesse sido indicado por algum dos grupos políticos. Acima de tudo, os eurodeputados deixaram claro que não deixariam que Londres vetasse pela quarta vez em 20 anos a escolha consensual do presidente da Comissão, sobretudo porque a decisão pode agora ser tomada por maioria qualificada em vez da unanimidade que foi durante muito tempo a regra.

Por uma vez, o PE parecia mesmo disposto a cumprir a ameaça de rejeitar qualquer candidato que não fosse Juncker. Em todo o caso, os líderes decidiram levá-la a sério e dar o passo necessário para evitar uma crise institucional, dando ao PE uma vitória política muito substancial.

 

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