O Ramadão também foi convocado para o Mundial

A partir de sábado tem início o mês reservado pelos muçulmanos para jejuar durante o dia. São vários os jogadores de países islâmicos num Mundial de grande desgaste e temperaturas altas.

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A Argélia, de maioria islâmica, continua em prova no Mundial 2014 Kirill Kudryavtsev / AFP

É provável que quando a França e a Nigéria se encontrarem em Brasília às 13 horas locais para o jogo dos oitavos-de-final do Mundial na próxima segunda-feira estejam temperaturas próximas dos 30ºC. Mais do mesmo daquilo que tem sido o ambiente tropical da competição. Mas com o jejum obrigatório do Ramadão tudo se complica para os atletas muçulmanos.

Começa este sábado o mês sagrado para a religião islâmica, em que, de acordo com os preceitos do Corão, se deve jejuar durante as horas de sol. Um jejum que em rigor abrange a comida e a bebida, o que num cenário de desgaste físico associado a temperaturas altas pode trazer alguns efeitos indesejados.

Este não é um assunto novo no futebol, mas o Mundial do Brasil é o primeiro desde 1986 que coincide com o mês do Ramadão. Em competição mantêm-se países de maioria islâmica, como a Argélia e a Nigéria, mas há jogadores em selecções como a alemã, a suíça e a francesa que também observam o jejum.

Não é o caso de Mesut Özil que, apesar de ser muçulmano, já revelou que não vai jejuar durante o Ramadão. “Estou a trabalhar e irei continuar a fazê-lo, portanto, não irei fazer o Ramadão”, explicou o médio alemão do Arsenal, citado pela AFP.

Esta é, de resto, uma opção viável para contornar as limitações impostas pelo mês sagrado muçulmano. Em alguns casos, como o das mulheres em período menstrual ou após a gravidez, assim como dos viajantes, há excepções previstas pelo Corão.

Manuel José, que teve uma longa passagem pelo Al-Ahly, conta ao PÚBLICO um episódio que se passou logo no seu primeiro ano no Egipto, em 2001. Jogava-se a primeira mão da final da Liga dos Campeões Africanos e a equipa egípcia ia jogar à África do Sul contra o Mamelodi Sundowns. Era Ramadão e os sul-africanos aproveitaram a circunstância para conseguir vantagem, marcando o jogo para as quatro da tarde.

“O jogo estava marcado e tínhamos de o cumprir”, nota o treinador português. “O clube arranjou um imã [autoridade religiosa islâmica] que foi explicar que não cometiam nenhuma heresia em quebrar o jejum para o jogo, estavam a representar o país. Há essa prerrogativa”, sublinha Manuel José.

O Al-Ahly acabou por conseguir empatar (1-1) e sagrou-se campeão africano depois de vencer em casa na segunda mão por 3-0. “Eles foram jogar e o que funcionou foi a lei das motivações e nem os suplentes quiseram comer”, recorda o técnico: “E jogaram muito bem.”

Esta situação é recorrente em África, diz o treinador. “Há algumas equipas de países não islâmicos que se aproveitam do Ramadão” e marcam jogos para a tarde – quando o jejum está em vigor. “A CAF [Confederação Africana de Futebol] nunca pôs qualquer impedimento e não adiantava de nada protestar”, observa Manuel José.

Quando as competições internas de países muçulmanos coincidem com o Ramadão o normal é que os treinos e os jogos sejam à noite, para que os efeitos do jejum sejam minimizados.

Isso é algo que não vai acontecer durante o Mundial, em que os jogos da fase a eliminar vão ser disputados às 13 e às 17 horas locais. “Parece-me muito complicado respeitar estritamente o Ramadão durante o Mundial”, observa Claude Leroy, em declarações à AFP. O antigo treinador do Omã refere o problema da hidratação durante os jogos nos períodos de maior calor, antecipando mesmo algum “perigo” para os jogadores.

A experiência de Manuel José leva-o a concluir que “os jogadores precisam de pelo menos três dias para se adaptarem a um novo horário de sono e de refeições a uma diferente alimentação”. A haver treinos diurnos, “o trabalho deve ser ligeiro”, acrescenta.

A FIFA tem-se debruçado sobre esta questão nos últimos anos. Em 2012, o Journal of Sports Sciences publicou um estudo que relacionava o Ramadão e a prática do futebol, assinado por vários especialistas, entre eles Yacin Zerguini, que faz parte do Comité Médico da FIFA.

A publicação estabelece algumas conclusões gerais, apontando os ciclos de sono como uma das áreas de maior impacto. “O jejum altera a fase cronológica dos jogadores. É importante saber como reorganizar o sono e torna-se importante lidar psicologicamente com a hidratação e a dieta que é alterada durante este mês”, afirmou Zerguini na altura.

Apesar das indicações gerais dadas pelos especialistas, é ao nível individual que se podem estabelecer as melhores estratégias para lidar com o jejum, que até pode servir como factor de motivação extra. O Al-Ahly de Manuel José bem o pode comprovar.

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