O amor à sombra de Darwin

Gui Amabis, produtor de Céu e, mais recentemente, Rita Redshoes, apresenta em Portugal a magnífica banda sonora para a sua genealogia que podemos ouvir nos seus dois discos a solo. Dia 8 toca na Casa Independente, em Lisboa.

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Um dia, Gui Amabis conta voltar às histórias da sua família numa pele de cantor-cronista, não se escudando na poesia com que o fez em Memórias Luso/Africanas (2011; 2013 na Europa). Há muito mais por desenterrar no lugar dos versos “Vou-me embora eu daqui porque já não tem mais flores / É irmão contra irmão, é o espinho da intenção / E num dia ele te olha e te beija e no outro vira a mão”.

Memórias, o seu álbum mestiço, partia precisamente de uma colagem de histórias recolhidas sobretudo junto da sua avó Firmina, mas que juntava peças soltas de uma histórias pessoal resultante de um encontro de heranças portuguesa, índia, espanhola e africana sobre um pano de fundo de escravatura. Era Amabis a desenhar a sua árvore genealógica e a trepar por ela acima, à procura de avistar o seu passado quando começava a afirmar-se finalmente como autor.

Com a contribuição de Céu, Dengue, Criolo, Tulipa Ruiz ou Lucas Santtana na criação desse mundo mestiço, havia já uma singularidade musical como Amabis organizava esta mestiçagem inscrita na própria identidade cultural brasileira. Memórias funcionava quase como lembrete de que, por muito que haja uma efervescência de peles e geografias em cada brasileiro, cada herança pessoal é única e desenha o seu próprio encontro mais ou menos inusitado. No caso de Gui, o álbum promovia o encontro entre essas histórias ouvidas a dona Firmina e o seu próprio trajecto individual, através de uma construção musical fermentada na sua experiência e na sua proximidade ao universo das bandas sonoras (Perfect Stranger, Bruna Surfistinha, Cidade dos Homens, etc). Nada de mestiçagem conforme a propagandeia Carlinhos Brown, por exemplo, através de um festival rítmico. Antes uma base de magníficas canções pop, com um gosto por orquestrações ouvidas a Ennio Morricone, Lalo Schiffrin ou John Barry, mas sempre recusando a espectacularidade. Aquilo que Gui Amabis faz, em cada canção, é uma minuciosa e tocante gestão de ambientes, com ligeiros esfreganços do jazz na canção clássica como faria Henry Mancini – oiça-se a maravilha de “Doce Demora”, está lá tudo com uma discrição perfeita. Até porque pop é uma palavra que Amabis gosta de pronunciar virado para o passado: “Beatles, Led Zeppelin – hoje em dia o que tem esse tamanho comparativo é uma pop influenciada pelos filmes da Disney, não é uma coisa suja, densa, real e poética, como era a pop antigamente.”

Memórias era um disco mestiço por natureza, em homenagem à minha ascendência, àquilo que originou o Brasil”, explica Amabis. “Fazia sentido ter outras vozes. Todo o mundo que está ali faz parte também um pouco dessa história, de um lado ou de outro – ou dos dois, como eu.” Do lado do pai, corre nas veias de Gui sangue índio, espanhol e negro de um bisavô filho de escravos e que provinha de Mogi das Cruzes, uma cidade no Vale do Paraíba, estado de São Paulo, e que adoptou como apelido o nome que os amigos lhe cunharam. “Como o meu bisavô gostava de ler e escrever, era um pouco poeta, os amigos lhe chamavam Amabis – amável em latim. Mas eles [a família] eram negros com terras e ele estudou – porque o primo era filho bastardo do dono da fazenda com uma escrava e a filha legítima dividiu as terras quando o fazendeiro morreu –, o que era uma posição muito interessante no começo do século XX.”

No entanto, é sobretudo o lado materno a alimentar Memórias Luso/Africanas, graças às histórias da avó transmontana de Gui Amabis, nascida em Seixo de Ansiães, aldeia portuguesa actualmente com perto de 300 habitantes. “A minha avó não media as palavras, contava tudo”, recorda. “E eu fiquei muito mexido com todas as relações de que ela me falava, das brigas dos irmãos, das traições, dos dinheiros. Inspirei-me um pouco nisso – no que a guerra e a fome fazem com as pessoas.” O avô, de uma outra terra a 20 minutos de Seixo, acompanhou Firmina na decisão de emigrar para o Brasil, em mais uma história patrocinada pela escravatura. “Eles foram para o Brasil devendo dinheiro para quem pagou a passagem deles lá. Tinham uma carta de um primo que morava lá para poderem ir e um fazendeiro do interior de São Paulo pagou a passagem para irem trabalhar na fazenda dele. Então eles já chegaram devendo a passagem, foram morar numa casa que era do dono da fazenda, pagavam aluguer, e compravam a comida na venda do mesmo fazendeiro. Eram escravos. Até uma noite em que fugiram para São Paulo.”

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Trabalhos Carnívoros, segundo álbum do músico, arrasta o mesmo imaginário de uma pop bombeada por referências fílmicas e um cancioneiro inglês por que Amabis se apaixonou com os discos do irmão mais velho

Canções de carne

Trabalhos Carnívoros, segundo álbum do músico que ficámos a conhecer melhor depois de escolhido por Rita Redshoes para a produção do seu Life Is a Second of Love, arrasta o mesmo imaginário de uma pop bombeada por referências fílmicas e um cancioneiro inglês (The Beatles, Pink Floyd) por que Amabis se apaixonou a partir dos discos de vinil do irmão mais velho. E investiga igualmente ligações familiares, ainda que de uma forma menos linear. “Venho de uma família de biólogos, meu pai e minha mãe são geneticistas. Então, nas conversas de casa a biologia sempre foi algo muito presente e algo por que me interessei na escola. Quando se fica adolescente, começa a se sentir outras coisas, paixão e amor, e ficava comparando isso com as coisas que ouvia em casa da biologia e da genética, como a vida evoluiu na terra, o sexo como reprodução e o que é que isso influencia eu amar alguém.”

Essa relação entre amor e Darwin serviu de mote para o tema “Trabalhos Carnívoros”, uma reflexão de Amabis sobre “como a vida se organizou aqui na carne, o desenvolvimento da vida na terra e do homem, e como o amor faz parte disso”. Não é, portanto, uma imagem de predador e presa, de carnívoro num sentido restrito da caça. A carne, aliás, é aqui imagem de fragilidade, de exposição ao mundo, de sentido físico para as consequências dos afectos. E mesmo a “regeneração da pele” mencionada na canção fala para a ressaca amorosa, trazendo a razão e a ciência para a imagem popular de lamber as feridas. Trabalhos Carnívoros um disco de gestação rápida, foi composto a acompanhar os primeiros dias de Gui separado da mãe da sua filha – a cantora Céu –, “procurando uma nova vida, um lugar para morar, reencontrando amigos que não via há muito tempo, parcerias que tinha abandonado por estar envolvido numa relação e com uma filha pequena”. “Foi um momento muito rico para mim a nível pessoal e em que me dediquei muito ao violão e à guitarra”, explica. “Escrevi rápido – acho que em seis meses tinha todas as músicas.”

O conjunto de músicas de Trabalhos Carnívoros é um consolo. Para Amabis, muito provavelmente, mas também para quem ouve. Mais longe ainda do que conseguia Memórias Luso/Africanas (dada a anterior dispersão vocal), é um disco de um universo raro, de canções fortíssimas na criação de imagens como o western de céus baixos e carregados em “Deus e Seu Guardião”, a alucinação rock arabesca de “Consulta Mental” ou o encontro Tom Waits-Caetano Veloso de “Pena Mais que Perfeita”. Em todas as canções, Gui pousa a sua voz com uma suavidade tocante, mais em paz do que dobrado pela tristeza. E essa é uma das grandes conquistas de Trabalhos Carnívoros. Antes de se profissionalizar, experimentou ainda actuar em bares e a coisa não correu especialmente bem. “Sempre que ia tocar, não gostava, não me sentia bem cantando aquilo”, relata. Percebeu depois que o seu problema era com o “aquilo” que cantava e não tanto com o facto de cantar. A verdade é que em Memórias preferiu não se expor tanto, até porque a própria ideia de mestiçagem pedia várias vozes, mas o tom pessoal de Trabalhos Carnívoros obrigava abandonar as máscaras: “O disco é uma viagem interna e um retrato do que estava sentindo. Não fazia sentido outras pessoas cantarem por serem visões do mundo muito pessoais”. Valha-nos Darwin.

O canto, de facto, assustava-o. “É um movimento difícil, cantar expõe muito, a voz é um instrumento vivo. Sente-se qualquer influência, se estiver nervoso treme a voz, se tiver frio é difícil, e há nenhum instrumento para se proteger.”

Trabalhos Carnívoros chega agora à Europa, tardiamente, dada a sua edição original brasileira datar já de 2012. Mas é a entrada certa no universo de Gui Amabis, enquanto prepara em Portugal o seu sucessor (a 8 de Julho toca na Casa Independente, em Lisboa), uma continuação do mesmo molde sonoro e temático. Tem trabalhado no disco com o rigor de um trabalho das dez às cinco. Depois, calça os ténis, faz caminhadas durante horas – que aproveita para inventar melodias e letras – e regressa para a sua provisória residência lisboeta. Sabe-se já que o disco se chamará Ruivo em Sangue. Desta vez, sem drama cinematográfico, mas com a mesma biologia poética. “O sangue é bom – mas quando se escapa de nós a gente se assusta.”

Gui Amabis

Trabalhos Carnívoros

Mais Um Discos

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