As regras do figurino

Eis um caso intrigante de uma personagem que se desprende, esvoaçando, do filme que a quis servir

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Esta é o filme “oficial” sobre Yves Saint-Laurent por oposição àquele que Betrand Bonello apresentou em Maio em Cannes, Saint-Laurent: o filme de Jalil Lespert foi apoiado pelo companheiro do costureiro, Pierre Bergé, guardião de uma memória e de um património, que permitiu o acesso a desenhos, vestidos e acessórios, enquanto que ao de Bonello prometeu caso em tribunal.

“Oficial” também por isto: se Lespert coloca o filme à entrada de um Museu de Figuras de Cera, em alguns casos e situações imobilizanda-se lá dentro, Bonello encarou com desprendimento o biopic. Aliás, Bertrand dizia em Cannes que pelo facto de Jalil ter cumprido as regras do figurino, sentiu-se livre para o desestruturar – o seu filme faz figura de jogo abstracto, puzzle mental, a partir de factos, figuras e situações.

Se isto é verdade, também o é que Yves Saint-Laurent e Saint-Laurent até são semelhantes. A selecção de acontecimentos e factos da vida do costureiro é a mesma (a colecção Mondrian como pièce de resistance, por exemplo, a meio do filme) e o olhar sobre o jogo de equilíbrios na relação conjugal também (nem se entende o que pode ter levado Bergé a adoptar o filme de Jalil e a recusar o outro). Mas sobretudo são semelhantes na dificuldade perante Yves Saint-Laurent: a figura de um homem na rotina do trabalho é algo que os dois têm dificuldade em concretizar, como se YSL que se revelasse inaprisionável, sempre dois palmos acima do chão, e não houvesse forma de lhe dar peso e consistência (mimetismos,  trejeitos, silhueta, e o princípio de realidade aqui). Todas as sequências do homem no seu atelier contêm em si a descrença: quer Yves Saint Laurent quer Saint-Laurent não podem acreditar nelas, o segundo apenas ensaia manobras de fuga.

Mas quem foge é YSL: eis um caso intrigante de uma personagem que se desprende, esvoaçando, dos filmes que a quiseram servir. Vasco Câmara

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