A guerra que também foi do futebol

As Honduras encerram a terceira participação em Campeonatos do Mundo da sua história, 45 anos depois de terem sido protagonistas de um conflito que teve como pretexto o futebol.

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Mauricio “Pipo” Rodríguez jamais imaginara aquilo que um golo seu poderia vir a desencadear. Foi o ex-jogador salvadorenho quem desfez a igualdade entre a sua equipa e a selecção das Honduras, no desempate da eliminatória de qualificação para o Mundial 1970, organizado pelo México. Passadas duas semanas e meia, estavam abertas as hostilidades entre os dois países. Um conflito que durou quatro dias, mas provocou entre 4000 e 6000 mortos, dependendo dos relatos, e mais de 15 mil feridos. Foi há 45 anos.

Este episódio da história da América Central ficou conhecido para a posteridade como a “Guerra do Futebol”. Foi o lendário repórter polaco Ryszard Kapuscinski, que acompanhou de perto os acontecimentos, quem apadrinhou a designação. Mas, na verdade, os jogos entre as duas selecções foram somente a faísca que incendiou as hostilidades, porque há vários anos que crescia a tensão fronteiriça entre os dois vizinhos, motivada por questões migratórias. Com propósitos nacionalistas, o futebol foi instrumentalizado para aumentar a rivalidade entre os dois países – e ficou para sempre associado, talvez injustamente, a esta guerra.

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“A verdadeira causa da guerra do futebol radicava no seguinte: El Salvador, o país mais pequeno da América Central, tem a densidade populacional mais alta de todo o continente americano (mais de 160 pessoas por quilómetro quadrado)”, escreveu Kapuscinski no livro “La guerra del fútbol” (não traduzido em português). Esta pressão demográfica foi utilizada pelos desgastados governos e um e outro lado da fronteira. Nas Honduras, o general Oswaldo López Arellano enfrentava forte contestação – estava em curso uma greve geral convocada por sindicatos, estudantes universitários e professores – e encontrou na expulsão de camponeses salvadorenhos uma válvula de escape. Mas isso teve consequências do outro lado da fronteira. “A chegada de milhares de desalojados colocava em apuros socioeconómicos a junta militar comandada pelo general Fidel Sánchez Hernández. Cerca de 300 mil salvadorenhos haviam atravessado a fronteira desde a década de 1920 para trabalhar nas plantações de bananas”, escreveu a emissora britânica BBC, num texto por ocasião do 40.º aniversário do conflito.

Neste quadro de turbulência, as selecções dos dois países enfrentaram-se numa eliminatória da qualificação para o Mundial 1970. Escusado será dizer que os jogos foram rodeados de enorme tensão. Tegucigalpa foi o palco do primeiro encontro, a 8 de Junho de 1969, e o jogo era encarado como assunto de estado nas Honduras, o que motivou uma onda nacionalista: “Para que as Honduras de agora em diante sejam única e exclusivamente dos hondurenhos, deves cooperar na expulsão do nosso país de todos estes malvados, procazes, assassinos, rufias, analfabetos e, por natureza, ladrões”, podia ler-se num panfleto impresso à época. Na noite antes do jogo, os adeptos hondurenhos foram para junto ao hotel onde ficava a equipa de El Salvador rebentar foguetes, fazer barulho e estiveram a gritar para não deixar os adversários dormir. No dia seguinte, El Salvador perdeu 1-0.

Se o ambiente já era escaldante, ficou ainda mais para o jogo da segunda mão, em San Salvador. A derrota foi mal recebida em El Salvador e o país clamou vingança. Amelia Bolaños, uma salvadorenha de 18 anos, cometera suicídio após a derrota sofrida no último minuto contra as Honduras. A jovem “não conseguiu suportar a humilhação a que foi submetida a sua pátria”, podia ler-se num jornal da altura. O funeral de Amelia Bolaños foi assunto de estado em El Saldador: estiveram presentes o presidente do governo e todos os seus ministros, todos os jogadores da selecção, conta o El Heraldo.

A selecção das Honduras foi recebida num clima de terror. “As pessoas estavam tão alteradas que cancelámos o treino e regressámos ao hotel. Havia uma multidão ali, com instrumentos, a fazer barulho... A primeira morte, de um miúdo salvadorenho que nos acompanhava, foi nessa noite. Às duas, quando saiu do hotel, apedrejaram-no e vimos, através das portas, como morria ali na rua. Durante a noite não resistiu um vidro”, recordou Fernando “Azulejo” Bulnes. “Chegou um momento em que realmente tememos pelas nossas vidas. A cana de um foguete partiu um vidro da janela do quarto onde estava com três companheiros. Também caiu um explosivo caseiro, que por sorte não explodiu”, acrescentou Tonín Mendoza, capitão hondurenho. A equipa decidiu refugiar-se no terraço do hotel até amanhecer. Os adeptos salvadorenhos atiravam ovos podres, ratazanas mortas e trapos nauseabundos para o interior do edifício através das janelas partidas.

No dia seguinte, a equipa hondurenha precisou de ser escoltada pelo exército para sair do hotel. O autocarro onde viajou teve de entrar no campo e deixou os jogadores em frente aos balneários. “O jogo converteu-se numa questão de amor pátrio, tanto que se queimou a bandeiras das Honduras”, contou “Pipo” Rodríguez. No seu lugar, no mastro, foi colocado um pano de cozinha.

Neste contexto, dificilmente pode considerar-se uma surpresa que as Honduras tenham perdido por 3-0. “Foi uma derrota terrivelmente afortunada”, admitiria um aliviado Mario Griffin, seleccionador hondurenho. Mas isso não foi o fim. As regras da altura impunham um desempate, dado que havia um triunfo para cada lado e o número de golos não contava. O jogo foi disputado a 27 de Junho, em terreno neutro: o Estádio Azteca, no México. E foi aí que “Pipo” Rodríguez fez o tal golo, no prolongamento, que deu a vantagem definitiva a El Salvador por 3-2. A selecção salvadorenha viria a vencer o Haiti na final da qualificação e participou no Campeonato do Mundo de 1970, regressando a casa com três derrotas e sem qualquer golo marcado.

Passaram duas semanas de ambiente escaldante até serem desencadeadas as hostilidades. “Os combates já estavam decididos. O futebol não provocou essa guerra. Foi uma desculpa”, frisou o hondurenho Rigoberto “Shula” Gómez.

A “mini-guerra”
“A guerra rebentou na segunda-feira [14 de Julho] após anos de tensão e uma recente e sintomaticamente violenta rivalidade futebolística. Os analistas consideram que no centro das hostilidades está uma recente explosão da população salvadorenha que atravessa a fronteira para o território cinco vezes superior das Honduras”, escreveu então a agência Associated Press, que chamava ao conflito a “mini-guerra” e lembrava que era a primeira em mais de 30 anos a ter lugar na América Latina.

“Hoje às seis da tarde começou a guerra entre El Salvador e Honduras a aviação de El Salvador bombardeou quatro cidades hondurenhas /STOP/ ao mesmo tempo as tropas de El Salvador violaram a fronteira com as Honduras na tentativa de penetrar no interior do país /STOP/ em resposta ao ataque do agressor a aviação das Honduras bombardeou os mais importantes centros industriais e objectivos estratégicos de El Salvador e as forças terrestres empreenderam acções defensivas”, descrevia Ryszard Kapuscinski, então correspondente da agência polaca PAP no primeiro despacho, enviado a 14 de Julho de 1969.

“O futebol ajudou a endurecer ainda mais os ânimos de chauvinismo e histeria pseudo-patriótica tão necessários para desencadear a guerra e fortalecer assim o poder das oligarquias nos dois países. El Salvador foi o primeiro a atacar. Tinha um exército muito mais forte e contava com uma vitória fácil”, prossegue o repórter polaco no livro que escreveu sobre o conflito.

Este foi “um dos conflitos mais surrealistas da história”, como o descreveu o El País. “O maior desapontamento do lado hondurenho foi o desempenho da sua força aérea. Mais de metade das bombas largadas não explodiu. Nenhum dos lados em conflito está equipado com armamento moderno. Camiões de leite foram usados em alguns pontos para o transporte de tropas, com espingardas que remontam às I e II Guerra Mundial”, ilustrava então a Associated Press.

O conflito entre dois exércitos mal preparados e sem armamento moderno durou pouco tempo. “A guerra do futebol durou cem horas. O balanço: 6000 mortos e 20 mil feridos. Cerca de 50 mil pessoas perderam as suas casas e terras. Muitas aldeias foram arrasadas”, resumiu Kapuscinski. “A guerra terminou num impasse. A fronteira manteve-se intacta. É uma fronteira traçada a olho, no meio da selva, num terreno montanhoso que os dois países reclamam. Parte dos emigrantes regressou a El Salvador, enquanto outros continuam a viver nas Honduras. Os dois governos estavam satisfeitos com a guerra, porque durante vários dias as Honduras e El Salvador tinham ocupado as primeiras páginas da imprensa mundial e tinham atraído o interessa da opinião pública internacional. Os países pequenos do Terceiro Mundo só têm a possibilidade de despertar um interesse vivo quando decidem derramar sangue. É uma triste verdade, mas é assim”, pode ler-se no livro do repórter polaco.

A Organização dos Estados Americanos negociou um cessar-fogo que entrou em vigor a 20 de Julho e as tropas salvadorenhas retiraram de território hondurenho no princípio de Agosto, recordava o El Heraldo, das Honduras. Os dois países assinaram em 1980 um Tratado Geral de Paz, no qual acordavam que a disputa fronteiriça seria resolvida pelo Tribunal Internacional de Justiça, em Haia. O processo, um dos mais demorados da história deste tribunal, teve o seu veredicto lido em 1992 – 23 anos depois do fim das hostilidades.

“Algumas pessoas acreditaram durante anos que a paixão relacionada com o futebol provocou uma guerra, mas isso é absolutamente falso” afirmou Mauricio “Pipo” Rodríguez à BBC. O ex-jogador salvadorenho voltaria a encontrar-se com os adversários dez anos mais tarde, após o fim do conflito. “Eles eram uma geração de bons futebolistas hondurenhos. Não havia qualquer questão entre nós, era um problema de governos”, sublinhou. Do lado hondurenho, o capitão Tonín Mendoza ainda olha para o passado com uma ponta de ironia: “As Honduras cortaram as relações com El Salvador durante dez anos. Para retomá-las organizou-se um jogo de futebol. Como as coisas são...”

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