Aquilo que eu devo ao Miguel

Quando não sabíamos, perguntávamos ao Miguel Gaspar. Suponho que seja esse o melhor elogio que lhe possamos fazer.

Quando entrei para o DN em 1998, acabado de sair da faculdade, o Miguel Gaspar era a referência dos estagiários, que, como se sabe, é uma espécie não particularmente considerada nas redacções. E era uma referência por uma razão muito simples: ele reunia em si um conjunto de qualidades que mais ninguém tinha à sua volta.

O Miguel era dono de uma cultura vastíssima, e falava com o mesmo à-vontade de filosofia, política, música, livros, cinema ou futebol. O Miguel era uma máquina de produzir ideias e um trabalhador incansável, daqueles que entravam às dez da manhã na redacção e nunca se sabia quando saíam. O Miguel tinha uma escrita belíssima, sendo simultaneamente elegante, criativo e irónico, e num tantas vezes circunspecto Diário de Notícias o seu sentido de humor destacava-se imenso – recordarei para sempre as suas magníficas crónicas diárias sobre televisão, que frequentemente iam muito além do espartilho do pequeno ecrã.

No Miguel, essa escrita saía a uma velocidade incrível, e ainda hoje me cai o queixo só de recordar a quantidade de prosa de primeira que aquele homem conseguia produzir num só dia – não conheci mais ninguém assim. E, finalmente, o Miguel tinha a mais preciosa das qualidades: total ausência de cagança, zero por cento de peneiras, o que lhe permitia tratar da mesma forma o chefe de redacção e o tipo que tinha acabado de aterrar na sua secção vindo da Universidade Nova, verdinho, titubeante e trapalhão. São coisas que não se esquecem.

Se o mundo fosse um lugar justo, e o jornalismo português um meio onde cada um conseguisse efectivamente desenvolver os seus talentos, o Miguel teria escrito até ao fim dos seus dias, sobre tudo aquilo que quisesse. Mas como quase sempre acontece na nossa profissão, há uma altura em que acabamos editores, chefes, directores, não porque o queiramos realmente, mas porque essa é a única forma de melhorarmos de vida, ganharmos mais um pouco, sermos abordados com novos desafios.

No papel de chefe, achei-o relutante. O Miguel sempre teve aquela desorganização própria das pessoas criativas e brilhantes, e a isso juntava alguns pruridos em lidar com os conflitos que os lugares de chefia invariavelmente exigem. Suponho que a certa altura isso nos tenha afastado. Mas, pelo menos da minha parte, manteve-se intocada a admiração pelo jornalista que possuía as melhores qualidades dos antigos – a cultura, a experiência, o empenho, a tarimba –, mas sem ter os seus piores defeitos – o cultivo do estatuto, a obsessão pelo passado, uma certa superioridade moral.

É terrível verificar a quantidade de jornalistas na casa dos 50, dos 40 e até dos 30 que eu vi morrer em 16 anos de profissão. São muitos. Demasiados. Este é um trabalho que desgasta, que consome, que por vezes nos desequilibra, que não faz bem à saúde. Há algo de profundamente tocante em ver o Miguel ir-se embora nesta altura, de tanta convulsão nos meios de comunicação social, e muito em particular no DN. Aos poucos, é todo o fim de uma era que se aproxima velozmente. E é como se o deus dos jornalistas tivesse decidido evitar que um dos seus melhores assistisse àquilo que está para vir. Só que sem ele as coisas ficam mais difíceis. Nós continuamos sem saber, e há cada vez menos Miguéis a quem perguntar.

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