O ministro da Cultura do Irão quer ver This Is Not a Film

A convite do Governo português, o ministro da Cultura iraniano veio a Lisboa assinar um memorando de cooperação. O objectivo do seu Governo, diz, é “promover os direitos e preservar as liberdades políticas” dos iranianos.

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Quando o ministro da Cultura do Irão diz que gostaria muito de conseguir resolver a situação de jornalistas e realizadores de cinema que cumprem penas de prisão (e estão impedidos de escrever e filmar por períodos que podem chegar aos 20 anos), há qualquer coisa que está a acontecer. Quando o mesmo ministro lamenta ainda não ter visto This Is Not a Film, filme que um desses realizadores fez chegar a Cannes numa pen USB escondida dentro de um bolo quando já estava em prisão domiciliária, há mesmo qualquer coisa que está a acontecer.

E se um importante realizador iraniano (Reza Mirkarimi) vem com esse ministro a Lisboa, depois de o ter ajudado a escolher os filmes a exibir durante a semana que marcou a assinatura de um memorando de cooperação cultural entre Portugal e o Irão? E se esse realizador é um dos melhores amigos de Jafar Panahi, autor de This Is Not a Film? E diz que a relação entre os cineastas e o Governo iraniano mudou do dia para a noite e acredita que daqui a um ano pode voltar a Lisboa e trazer Panahi? Sim, aconteceu qualquer coisa em Teerão e essa mudança passou por aqui nos últimos dias. Ainda envergonhada, sem Panahi, mas sim, uma mudança.

Na República Islâmica do Irão os presidentes e os deputados são eleitos em idas às urnas realmente disputadas. Com problemas, certo: há candidatos impedidos de se apresentarem a votos por conselhos onde se sentam líderes religiosos, também estes eleitos, mas de forma indirecta e por muitos, muitos anos. Há um Parlamento onde estão representadas quase todas as sensibilidades políticas – e o actual ministro da Cultura, Ali Janati, sabe que isso pode ser complicado, já enfrentou críticas ferozes em debates acesos com os parlamentares mais conservadores.

A República Islâmica do Irão é um país onde o poder se divide de forma muito complexa e existe um poder acima de todos. É o guia ou líder supremo e chama-se ayatollah Ali Khamenei. Em quase tudo o que realmente interessa, em todas as mudanças que podem fazer abalar as fundações desta república nascida em 1979, a última palavra pertence-lhe.

Khamenei viu Mahmoud Ahmadinejad ser eleito, em 2005, e não terá desgostado. Viu-o depois ser reeleito – em 2009, nas eleições que desencadearam a maior vaga de protestos no país desde, precisamente, 1979. Esses protestos, onde se gritava “fraude”, foram reprimidos com violência, por milícias também elas religiosas. No fim, estudantes e activistas foram detidos. Realizadores impedidos de filmar. Tantos, tantos jornalistas proibidos de trabalhar.

2009 ficou lá atrás? 2013 foi o ano em que Khamenei viu Hossan Rohani ser eleito e os jovens voltaram à rua, agora para celebrar, como fizeram, quase em simultâneo, com a qualificação do Irão para o Mundial do Brasil. Foi a 15 de Junho, há um ano. E foi como se, afinal, ainda houvesse presente e esperança de futuro.

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This Is Not a Film foi exibido em 2011 em Cannes perante a cadeira vazia que o festival lhe dedicou REUTERS/Tobias Schwarz

Rohani não é um santo milagreiro, é só um homem. Ali Janati, o seu ministro da Cultura, filho do ayatollah Ahmad Janati, considerado um membro da linha dura do regime, tido como o mais próximo conselheiro que o ortodoxo Ahmadinejad teve entre a hierarquia religiosa, é só isso, mais um homem.

O pai do ministro é um pouco mais: lidera o poderoso Conselho dos Guardiães, o tal que decide quem pode apresentar-se às presidenciais no Irão, e isso é uma ínfima parte do que faz e pode. A hierarquia religiosa não quer uma nova revolução. Passados 35 anos, prefere um Presidente mais liberal e reformista que o anterior. Assim, os jovens festejam na rua e as mudanças acontecem devagar, ao ritmo que essa hierarquia permitir.

Diminuir o fosso
Janati, o ministro, diz que há um fosso de 20 anos entre o Irão e parte do resto do mundo. No Irão, ainda se desconfiava do fax e já ninguém mandava faxes. Aconteceu quase o mesmo com o Facebook, o Twitter… Este Governo, diz Janati durante uma entrevista descontraída, numa das poucas sombras do jardim da residência do embaixador iraniano em Lisboa, quer acabar com esse fosso, pôr o Irão pelo menos à mesma velocidade que o resto do mundo.

“Há outros actores que tentam manter esse grande fosso, nós tentamos que o fosso diminua o mais possível. Há milhões de iranianos que usam a Internet todos os dias e visitam centenas de milhares de sites. Todas as redes sociais são usadas no Irão, como o Twitter e o Facebook, e ferramentas como o Viber”, diz Janati. É verdade.

O problema, claro, nunca foi o meio; o problema é sempre o conteúdo. No Irão, há o Governo, o Parlamento, a hierarquia religiosa e a Justiça, que esta última controla. “Não tenho problemas com as leis nem com a Constituição. Mas temos uma delegação de supervisão constituída por representes do Governo, representantes do Parlamento e da Justiça. Nós tentamos promover tanto quanto possível a liberdade de imprensa e impedir a proibição de publicações”, explica o ministro.

Um ano depois
Cada um faz o seu trabalho e tentar nem sempre é conseguir. “Há casos de jornalistas que podem ter estado na prisão ou ainda estão. Nestes casos, tentamos negociar com o sector da Justiça para que sejam libertados e retomem as suas actividades.” Tentar às vezes é conseguir, mas nem sempre.

Reza Mirkarimi, 47 anos, realizador premiado (em festivais iranianos, russos, japoneses e com o Grande Prémio da Crítica em Cannes, aconteceu em 2001, com o filme Under the Moonlight), veio a Lisboa com Janati. Foi dele a selecção de filmes que o ministro incluiu na semana dedicada à cultura iraniana e às relações entre Portugal e o Irão. Mirkarimi é, não se cansa de repetir, “um optimista”.

Há um ano, perguntamos, teria sido possível estar aqui, neste contexto? “As relações entre o Irão e a Europa melhoraram muito”, começa por dizer. E entre os cineastas e o Governo? “Sim, não gosto de falar do passado, mas tivemos um período negro, muito difícil para a produção cultural. A Casa do Cinema [sindicato] esteve quase a fechar por causa do governo anterior. Este meu optimismo é justificado. Tudo se acelerou nos últimos meses”, diz Mirkarimi.

Não mudar uma linha
E então, Mirkarimi está em Lisboa e diz ter trazido os filmes que quis. Um retrato do que hoje se faz no Irão, do cinema de animação a Asghar Farhadi, realizador de A Separação, Óscar para Melhor Filme Estrangeiro em 2012 – o próprio estava ocupado, veio o seu trabalho (Acerca de Elly, 2009, prémio de Melhor Realizador em Berlim, 2010, pôde ser visto na Cinemateca, sexta-feira). Vieram também jovens promessas, como Mohsen Gharaei: Don’t be Tired, a sua primeira longa-metragem, foi exibido quinta-feira na Fundação Calouste Gulbenkian.

Gharaei tem 30 anos e foi muitas vezes assistente de Mirkarimi. Nem todos fazem os filmes que querem. Gharaei fez Don’t be Tired como quis. Mas o seu segundo projecto acaba de ser chumbado pelo Ministério da Orientação Islâmica. “Empenhei-me tanto, gastei energia, tempo. E no último momento, o filme não vai ser feito, é desesperante”, diz Gharaei.

Foi há três semanas mas Gharaei já decidiu que não vai mudar uma linha – há realizadores que reescrevem os guiões até os verem aprovados. “Prefiro pôr o projecto na gaveta e voltar a trabalhar com Reza”, diz, a apontar para o mestre, sentado à sua frente no bar de um hotel junto ao Tejo. “Assim, continuo a aprender, preparo-me para o meu próximo filme”, justifica. “Eu não vou mudar uma linha do meu guião. Prefiro esperar, quero ter um guião que não seja alterado.”

Uma nova tolerância
Ali Janati, o ministro, diz que quer o mesmo que Gharaei e Mirkarimi. Eles acreditam nisso o suficiente para terem vindo a Lisboa. “O Governo do Presidente Rohani prometeu promover os direitos dos seus cidadãos e preservar e proteger as suas liberdades políticas. Esse é um dos seus principais objectivos”, sublinha o ministro da Cultura.

Entretanto, Jafar Panahi continua, como outros, impedido de filmar. Detido em Março de 2010, foi acusado de “propaganda contra o Governo”; em Dezembro desse ano era condenado a seis anos de prisão e proibido de voltar a realizar (escrever guiões, dar entrevistas, deixar o país) durante 20 anos. Enquanto esperava pelo recurso, assinou o documentário This Is Not a Film (2011), um diário dos seus dias em casa, exibido nesse ano em Cannes perante a cadeira vazia que o festival lhe dedicou.

Ali Janati fala de “uma nova tolerância, tolerância perante as opiniões divergentes e o gosto de cada um”, a mesma tolerância que faz com que a sua relação com o pai “não seja posta em causa”. Perguntamos-lhe se já teve a oportunidade de ver This Is Not a Film. “Infelizmente, não, ainda não. Mas vou ver, de certeza.”

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