De que é Pirlo o nome?

Vantagens e inconvenientes do culto da personalidade futebolística de Andrea Pirlo.

Sabemos da importância que os media assumem no desporto de hoje, articulando inúmeros processos de espectacularização e de mercadorização das modalidades. Já os efeitos que as imagens de jogo exercem sobre a experiência estética desportiva poderiam ser mais discutidos. E ao falar de experiência estética refiro não apenas a do espectador que vê, mas também a do desportista que joga e vê jogar.

A interacção entre o jogo e a sua imagem não é sequer uma questão nova e poderia até dizer-se que o desporto nasceu para contemplarmos o espectáculo da nossa própria actividade corporal, à semelhança dos amantes que se olham ao espelho durante o acto. No domínio do futebol, a relação entre o jogo e a imagem talvez se encontre melhor sugerida na célebre expressão "defesa para a fotografia", alusiva às figuras a que um guarda-redes poderia prestar-se quando suspeitava da presença da máquina fotográfica. Os guarda-redes não foram, todavia, os únicos que fizeram depender os seus gestos da imagem por que pretenderam fazer representar-se. Vem-nos à memória, nomeadamente, Antonín Panenka. No Campeonato da Europa de 1976, este futebolista checoslovaco bateu um penalty de forma particularmente astuciosa, conferindo à bola uma trajectória vagarosa, em jeito de parábola e dirigida ao centro da baliza, isto é, em perfeito contraponto ao rápido deslocamento do guarda-redes alemão, o qual, por tributo ao hábito, se precipitou num só salto em direcção a um dos postes. O penalty à Panenka – assim designado de então em diante – foi contemporâneo do recurso televisivo à repetição em "câmara lenta" e, como sugere o historiador Patrice Blouin, pode também ser interrogado pela sua afinidade com o recurso cinematográfico ao ralenti. Se através deste o cineasta se institui como aquele que comanda o ritmo das imagens em movimento, o jogador que executa uma grande penalidade à Panenka faz algo semelhante, aproximando o seu golo daquilo que, por regra, classificamos como obra de arte. Aliás, ao atribuirmos uma boa dose de loucura a quem assim executa uma grande penalidade, não será por acaso que acabamos por nos inspirar numa certa ideia do artista enquanto génio tresloucado.

Mais raramente, contudo, a repetição do gesto de Panenka tem sido interpretada em benefício de outras ideias de futebol. É o caso da que, de alguns anos a esta parte, vem ganhando vida a partir da figura do italiano Andrea Pirlo. Na sua já longa carreira, por mais do que uma vez o italiano recorreu ao método de Panenka. mas tal facto não lhe tem valido a suspeita de qualquer desregramento. Pelo contrário, o recurso de Pirlo a essa forma de execução é frequentemente discursado enquanto prova de uma sua excepcional racionalidade. Ao contrário do que tem sucedido a muitos outros futebolistas que repetem o gesto de Panenka – por exemplo Hélder Postiga no Euro 2004 –, o recurso ao método do jogador checoslovaco em Pirlo não é entendido como sinal nem de loucura, nem de irreverência, nem de irresponsabilidade, antes fazendo prova do controlo absoluto do italiano sobre toda e qualquer circunstância do jogo. Fundado num conhecimento perfeito de todos os aspectos do futebol moderno, o génio de Pirlo assentaria em particular na sua capacidade de visão. O médio da Juventus seria dotado de qualidades superiores de observação, “superior” sendo aqui indicativo de um jogador que vê “mais” e “melhor” do que os outros, mas, também, que vê o jogo “a partir de cima”, de um ângulo acessível apenas a partir do topo de uma bancada ou da câmara alta da televisão. De resto, terá sido esta superioridade de visão a permitir o primeiro golo italiano deste Mundial: encarando a bola à sua frente sem deixar de ver o colega atrás de si, Pirlo fez o “túnel” que tornou possível o remate vitorioso de Marchisio.   

À espera dos próximos jogos da selecção italiana, resta-nos por hoje assinalar a vantagem e o inconveniente que, da nossa parte, encontramos no culto da personalidade futebolística de Andrea Pirlo. É que se o mesmo nos interessa por devolver à condição futebolista virtudes que nos últimos anos têm sido insistentemente confinadas à condição treinadora, inconveniente será esquecer que o futebol é e deve ser uma prática colectiva irredutível tanto à “loucura” como à “racionalidade” de quem quer que seja. 

Historiador 

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