Joan Fontcuberta quer fazer de nós animais políticos

Fotografamos sem parar, mas não questionamos o sentido do que fazemos. Estamos ainda à espera de uma revolução, a da higiene visual. O artista catalão comissaria uma das exposições do PHotoEspaña, que se inaugurou com um corte orçamental de 35% e o anúncio da abdicação de Juan Carlos. Na maratona de 108 exposições, há um denominador comum: a memória ocupa que lugar?

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Ensaísta, fotógrafo “autodidacta” (é ele que pede para ser identificado assim), artista que soma prémios, comissário, autor de inúmeros livros, professor. Também foi jornalista e trabalhou em publicidade. O catalão Joan Fontcuberta não poupa críticas. Sobretudo as que dirige à sociedade globalizada que nos fez “democratas” sem educação para a estética. Diz que é urgente descobrir modos menos convencionais de documentar e representar a realidade. Se é que queremos acreditar em algo e fazer narrativa sobre isso. Em última análise, quer-nos melhores cidadãos, actores com voz própria e intervenção política, seja qual for a forma de expressão artística. E até chegar aí, diz, o percurso faz-se desconfiando. No próximo Outono, estará nos Encontros da Imagem, em Braga, com o projecto fotográfico Milagres & Co, que conta “a história de um misterioso mosteiro na Finlândia onde os monges ensinavam a fazer milagres”. Diz que é uma paródia sobre a fé, a superstição e o modo como a religião se infiltra na política. Afinal, os seus temas de sempre.

Mas, nos últimos cinco meses, o que Fontcuberta fez foi descobrir 20 jovens artistas, todos nascidos após os anos 1970, todos desconfiados. O resultado está nas paredes da Sala Picasso, no primeiro andar do Círculo de Bellas Artes, em Madrid (inaugurou a 4 de Junho e fica até 27 de Julho). Chama-se Fotografia 2.0. e, depois de a apresentar aos jornalistas, numa visita privada promovida pelo PHotoEspaña, abriu um sorriso, despejou o casaco no braço de um dos cadeirões brancos à entrada do Círculo de Bellas Artes e, entre o troar dos berbequins e o vaivém de trabalhadores a estender passadeiras vermelhas, Joan Fontcuberta dispôs-se a falar sobre o que mais o faz mexer.

Para usar uma formulação sua, “vivemos em saturação de imagens”. As que nos chegam pelas câmaras de vigilância, as veiculadas pelas redes sociais, as da imprensa escrita e televisiva. Qual é o debate que urge fazer: o autoral, o da devassa de intimidade, o do avanço da tecnologia, outro?

A urgência está na vocação da imagem. Convertemo-nos, depressa de mais, em produtores de imagens. Mas ninguém nos instruiu sobre a gramática e a sintaxe da mesma. Se fizermos uma revisão da História, recuamos até ao tempo das cavernas para perceber que os desenhos eram feitos por sacerdotes, feiticeiros, isto é, as imagens tinham um lado mágico. Quando se desenhava um bisonte, era para lhe captar a alma e, nesse sentido, abençoar a caça. Não era só com o intuito da representação, havia uma componente mais sobrenatural. Depois, chegaram os artistas, que tinham um dom e constituíam uma elite, porque tinham capacidades especiais. E a seguir, com as técnicas visuais, e sobretudo com a fotografia, chegaram os profissionais. Mas a popularidade do uso de uma câmara trouxe por acréscimo os amadores. Há que recordar que a fotografia era tida para momentos especiais, solenes. E chegámos aqui, ao ponto em que fazer uma fotografia não custa nada. E, contudo, lidamos com este paradoxo: estamos sempre a produzir imagens mas não há quem as possa admirar. Invertemos os termos da equação: fotografamos sem parar, mas, proporcionalmente, não temos noções de uma pedagogia para a fotografia. Fabricamos fotografias, mas não lhes questionamos o sentido. E se esse controlo não estiver nas nossas mãos, alguém o fará por nós. Portanto, por detrás desta necessidade educacional, há uma outra questão, mais política.

Falamos de uma responsabilidade social para a fotografia.

Bill Gates disse que quem quer controlar os espíritos tem de controlar as imagens. Há que reivindicar a autoria, não podemos renunciar ao controlo das imagens. Porque, se o fizermos, pode ter efeitos e repercussões que têm a ver com poder, interesses económicos, inclusive imposição de modelos de organização social. Nós, os fotógrafos que participamos nesta fabricação de imagens, temos a nossa quota de responsabilidade. Devemos ter esta consciência: se vamos colaborar e produzir fotografias que levem a uma certa submissão e ao consumismo, tornando-nos socialmente passivos, ou se, ao invés, vamos produzir imagens de resistência.

Nessa resistência perpassa a autocensura? Para alguém que conheceu a ditadura e formas várias de censura como foi o seu caso, como é que ela é exercida?

Abunda, de facto, a autocensura. Seja porque na Internet a vemos em prática nos regimes autoritários, nomeadamente fechando portais incómodos; seja nos regimes ditos democráticos que nos submergem num magma de dados banal que dificulta, ofusca mesmo, o acesso à verdadeira informação. Deletrix, que ainda há pouco tempo expus e publiquei em livro, é um trabalho que reflecte a censura em textos clássicos, a maioria nos tempos da Inquisição.

Há um “guia de sobrevivência” para a arte, fotografia incluída, e a respectiva crítica numa sociedade digital?

Tanto a arte como a crítica precisam repensar-se. A arte está cada vez mais um laboratório de ideias e nisso distancia-se das indústrias culturais e do mercado.

Em todo o seu trabalho, há o tema recorrente de que não podemos confiar no documental e, em última análise, no fotojornalismo. Acredita em quê?

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Tenho escrito muito sobre esse aspecto, alertando para que desconfiemos do que nos aparece como documento. Parece-me que temos de encontrar novas fórmulas de documentar. Porque o documento em si mesmo, de certa maneira, continua a ser necessário.

Recorda-se de algum trabalho recente que o tenha impressionado na categoria de fotojornalismo?

Os de Reinaldo Loureiro e de Laia Abril, incluídos na exposição Fotografia 2.0. [ver texto nestas páginas] são exemplos de fotojornalismo e, além do mais, trazem novidade. Há tempos, o projecto Riley and his story, de Monica Haller, também me pareceu muito válido [a artista norte-americana concebeu um livro a partir de fotografias tiradas pelo soldado Riley Sharbonno durante as suas comissões na guerra do Iraque].

Gostaria de voltar ao que falava ainda há pouco: que outras fórmulas se podem usar para documentar?

Há modelos menos convencionais, como se pode ver nesta exposição. Há, até, uso de imagens que não foram necessariamente feitas pelo fotógrafo. O importante não é quem fabrica fisicamente as imagens. Antes, quem lhes dá sentido. E nisso quero dizer incluí-las numa plataforma discursiva particular. Pode ser numa exposição, em livro, numa revista, até num meio de comunicação social. Mas com este propósito: de que maneiras usamos as fotografias e as combinamos para que articulem um enunciado.

Escreveu um Manifesto PostFotográfico com a sua visão sobre a actuação de um artista fotógrafo e no qual menciona que a urgência pela imagem acaba por prevalecer sobre as qualidades da mesma. Quer explicar o que é a “estética do acesso” de que fala neste caudal de imagens em que vivemos?

Clément Chéroux [curador de Fotografia do Centro Pompidou] diz que, assim como a instalação de água corrente nas nossas casas trouxe uma revolução para a higiene e conforto, termos ao nosso dispor a Internet, [que] é abrir as portas a jorros de imagens, e nisso temos outra revolução, a da higiene visual. E termos tudo isto disponível significa, mais do que nunca, que as imagens têm de ser o reportório sobre o qual trabalhamos. Os projectos artísticos que de momento me parecem ter maior potencial são aqueles em que as imagens estão lá por referência a outras, propondo definitivamente uma crítica da representação e da linguagem.

Como chegou a este conjunto de 20 jovens fotógrafos para montar Fotografia 2.0.?

Há vários tipos de exposição. As de museu, que demoram muito tempo e obrigam a olhar para trás, para a História, socorrendo-se de muitos recursos, investimento e metodologias próprias. E as de festival, como é o caso, em que o trunfo está na frescura do que se apresenta. Misturei projectos que nem estão terminados com outros totalmente consolidados, até em publicação. Tive cinco meses para o fazer. Parti de premissas, sabia o que queria. Mas, a meio do processo, encontrei outras propostas que me aliciaram e nas quais nem tinha pensado. Claro que também tive a preocupação de não repetir autores. A verdade é que, em Espanha, se têm visto várias exposições de jovens fotógrafos e artistas e ainda há bem pouco tempo uma delas juntava quatro autores que, à partida, eu iria incluir nesta mostra. Assim, estou a dar oportunidade a outros, menos conhecidos, de se tornarem visíveis.

Que encaixam na fronteira que defende de alcance da verdade?

Considero-me prioritariamente um criador. Que gosta de reflectir, de questionar, de conhecer a História. Por isso, quando estou a criar ou a comissariar uma exposição, estou também a falar do meu trabalho.

É sempre autobiográfico?

Sim. E estes autores levantam tópicos que me preocupam. Até me dão inveja (riso), porque apresentam trabalhos que eu próprio gostaria de ter feito.

Andamos à procura que a fotografia e os discursos artísticos nos tragam algum tipo de redenção para sobreviver à superficialidade e ao imediatismo?

Eu queria que a fotografia contribuísse para nos sacudir as consciências e estimulasse o nosso sentido crítico. Isto tornar-nos-ia animais políticos mais preparados para sermos melhores cidadãos.

A jornalista viajou a convite doPHotoEspaña e do Turismo de Espanha

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