Em Nome do Povo: memória e história de Angola

Uma investigação dos acontecimentos do 27 de Maio de 1977 em Angola que não resiste à pulsão da denúncia e assim perde espessura histórica

Foto
Continua a saber-se muito pouco sobre o 27 de Maio

Lara Pawson foi correspondente da BBC em Angola entre 1998 e 2000. O seu livro inscreve-se numa longa genealogia de obras de autores anglo-saxónicos que, ao longo do século XX, denunciaram as iniquidades praticadas nos espaços africanos sob dominação portuguesa.

Claro, Pawson contrasta com essa longa lista de académicos, jornalistas, missionários ou filantropos por se insurgir já não contra o poder imperial, mas contra aqueles que lhe sucederam. Acresce que aquilo que parece ter sido um importante móbil para a escrita deste livro foi o desencanto da autora perante a postura de alguns intelectuais de esquerda seus compatriotas, em especial Basil Davidson e Michael Wolfers, face aos eventos relatados.

Em Nome do Povo

não é um livro académico. É um livro escrito num registo que oscila entre o jornalismo e o diário de bordo por uma investigadora que pretendeu saber mais sobre os acontecimentos do 27 de Maio de 1977 em Angola — segundo esta, o clímax de uma tentativa de golpe de estado levada a cabo por uma ala do MPLA liderada por Nito Alves, a que se seguiu uma severa repressão de milhares de angolanos. O livro segue escorreito entre deambulações pelos múltiplos locais onde se processou a investigação, reflexões várias e entrevistas a diversas testemunhas. Novas pistas de investigação são abertas, nomeadamente pela consulta de investigações com acesso a arquivos estrangeiros, num esforço para fugir a uma narrativa excessivamente local. O carácter auto-reflexivo permite ainda que se confronte o leitor com dúvidas pertinentes: o que torna este evento tão singular na história angolana recente? Será a contagem do número de mortos determinante?

Continua a saber-se muito pouco sobre o 27 de Maio. Os livros sobre a matéria são raros, as testemunhas nem sempre querem falar, há condicionantes evidentes em Angola e alguns dos arquivos relevantes são de difícil acesso. Os inúmeros constrangimentos que a autora enfrentou para escrever esta obra são evidentes. O trabalho que tem vindo a desenvolver, no entanto, prometia novas informações e uma problematização inovadora, expectativas ainda mais legítimas se se atender aos esforços de promoção da obra. As críticas de Pawson a outros trabalhos, de índole académica, fariam supor que esta obra não incorreria em certos problemas. Mas porque é que não existe praticamente qualquer fonte primária não-impressa nesta obra? Especialmente para um período tão curto e localizado temporalmente, marcado por uma grande violência, colocam-se problemas sérios. Afinal, nenhuma perspectiva pode ser considerada falsa, mas cada uma reporta-se apenas à forma como cada testemunha vivenciou os acontecimentos e modelou a sua interpretação do longo do tempo, 37 anos mais precisamente. O uso de fontes primárias não-impressas poderia atenuar, ainda que de forma parcial, alguns destes efeitos potencialmente perniciosos.

A opção estética da autora em potenciar o efeito dramático da entrevista também merece ser criticada. Uma tal dramatização leva, por exemplo, a autora a confessar-se “culpada por ter duvidado dela [viúva de uma vítima]”. A este problema juntam-se outros dois: a ausência de uma grelha analítica clara e a forma como a autora, respeitando formalmente o distanciamento entre a sua voz e a do entrevistado, “guia” as entrevistas, pontuando-as com reflexões que deformam o olhar do leitor. É que se uma tentativa de equidistância é desejável, isso não deveria impedir a autora de ser mais explícita acerca da valorização que faz de cada uma das teses recolhidas. Pawson afirma, por exemplo, que não se pode “culpar os angolanos” pelo ressentimento em relação aos portugueses, pois aqueles terão sofrido 500 anos de violência: é uma afirmação no mínimo arrojada. Nunca fica claro o que pensa a autora, qual é a sua proposta de interpretação dos acontecimentos. Fica ainda a nota da diferença de registos empáticos da autora face aos entrevistados em função do seu papel nos eventos e da informação revelada.

Nullable object must have a value.
ARTIGO_SIMPLES

O livro falha em demarcar-se da já notada pulsão de denúncia. Isso é particularmente evidente na forma como as sequências de eventos são apresentadas. À violência colonial de 500 anos segue-se a repressão de 1977 que, por sua vez, está intrinsecamente ligada ao ambiente político e social que se vive em Angola hoje. Nem por um momento a autora se questiona sobre esse compacto macro-histórico de 500 anos, das suas múltiplas configurações e respectivas características. Pura teleologia e simplismo de mãos dadas. Pawson oferece uma visão essencializada e a-histórica do colonialismo, indo neste aspecto muito mais longe do que tantos daqueles que critica. Este conjunto de problemas deriva precisamente da natureza ambígua deste livro. Pisca o olho às humanidades, recorrendo a dois ou três autores que reflectiram teoricamente sobre o colonial e o pós-colonial (como Fanon e Mbembe), mas apenas de uma forma instrumental, no sentido de conferir autoridade a duas ou três apreciações estritamente relacionadas com os eventos.

Raça e classe são conceitos mil vezes repetidos em articulação, sem que se perceba como é que a conjugação destes conceitos pode ser operacionalizada para compreender os acontecimentos. Não que a questão racial não seja fundamental, mas a sua ubiquidade tende a obscurecer outras dinâmicas que podem ter estado em jogo: desde a mera disputa de poder, a dinâmicas sociais locais, a questões de natureza ideológica. Esta opção revela igualmente alguns problemas em pensar de forma mais crítica o teor da informação recolhida. A ausência de entrevistas a cidadãos anónimos que tenham estado, na altura dos acontecimentos, ao lado da direcção do MPLA pode, também, ter contribuído para esta tendência.

Em Nome do Povo

fornece elementos novos sobre o que se passou a 27 de Maio de 1977 e nos anos que imediatamente se lhe seguiram em Angola. Tem, certamente, a virtude de chamar a atenção de muitos para os terríveis acontecimentos e para o drama das vítimas e dos familiares. Representa um contributo para a memória histórica de Angola e cumpre, ainda que com algumas limitações, o objectivo declarado de dar voz aos que vivenciaram os eventos, vítimas e perpetradores. Mas está longe de fornecer um olhar com espessura histórica sobre o 27 de Maio de 1977.

Sugerir correcção
Comentar