Sobreviver à Copa

Se não me engano, bebi 196 minis, fumei 2800 cigarros, engordei doze quilos, vi o meu cabelo crescer até aos ombros e um casal de andorinhas fez ninho na minha barba

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Ninja Midia/Flickr

Estou sem dormir há uma semana, acabou-se-me a roupa lavada, de modo que ando nu em casa, e nem vale a pena sonhar em fazer máquinas porque me esqueci de pagar a conta da água – o que me impede, há dias, de tomar banho, levando a que uma espécie de sarro se acumule sobre a pele e um odor acre se liberte das axilas com uma força tal que vários passarinhos desfaleceram no quintal. Sei que estou vivo – mas só porque a minha empregada mo disse, quando hoje de manhã me aplicou uma massagem cardíaca e um boca-a-boca para me reanimar. No delírio em que me encontro, achei-a, nos seus 148 quilos, tremendamente bonita.

Sei que parece, mas não estou a ressacar de heroína. O que se passa é bem mais brutal: estou a sofrer de uma sobredose de Mundial. Desde o começo da Copa entrei em processo acelerado de transformação em Homo mundialis: o sofá tornou-se o meu lar, a televisão a minha igreja. Vejo todas as partidas, não perco os comentários pós-jogo na BBC, na ITV e na ESPN, esta para me rir com a ausência de conhecimento dos americanos, e lá pelas três da manhã, quando a febre da bola acalma, vou trabalhar.

O meu stock de comida saudável acabou; nas últimas 78 horas alimento-me exclusivamente de atum e sardinhas em lata, cujo óleo escorre e besunta o chão, deixando-o num estado de degradação que antes me levaria à histeria e hoje me deixa indiferente. Se não me engano, bebi 196 minis, fumei 2800 cigarros, engordei doze quilos, vi o meu cabelo crescer até aos ombros e um casal de andorinhas fez ninho na minha barba. Mas está tudo bem, está tudo bem. Quer dizer, quase tudo: perdi o código do MBNET, pelo que o meu inêxito na tentativa de fazer apostas online é total – para meu azar, adivinhei quase todos os resultados do mundial, inclusive o auto-golo do Brasil (tenho provas). A 50 euricos, a aposta tinha-me rendido 300 vezes mais: um ano de trabalho.

Já nem levo a minha cria à escola: invento desculpas (“Dói-me a barriga”, “Tenho uma enxaqueca”, “Estou com gripe”) e os amigos, preocupados, revezam-se em turnos para garantir a educação da criança. Como ainda não me cortaram o telefone, vou encomendar hoje víveres e pedir para me os trazerem a casa, mas nem abro a porta com medo de perder um golo. Que deixem os mantimentos à entrada, e quando houver uma pausa hei-de ir lá. Se estiver vivo.

Mas está tudo bem, está tudo bem — excepto as portas cá de casa, que empenaram ou tombaram à conta dos pontapés que lhes mandei durante o jogo de Portugal, uma hora e quarenta e cinco minutos de demência tão saudável que o meu filho se barricou no quarto, acabando por desfalecer. De fome. Sei que tenho de conversar sobre isto com a minha ex-mulher e até já marquei dia na agenda – obviamente, para depois da Copa.

A culpa não é minha, eu não sou doente, como poderia ser se sou um fanático de desporto e o desporto, por definição, faz bem à saúde? A culpa é deles, dos jogadores, que em vez de um profissionalismo cinzento se encheram de brio patriota e desataram a fazer jogos inolvidáveis. Podia lá deixar o Brasil-México a meio? Seria uma falta de respeito com Ochoa. Cabe na cabeça de alguém não ver um jogo da Itália até ao fim? E depois, quem ia gabar a barba e os passes de Pirlo? Como não assistir aos jogos do Gana, se o novo lateral do Porto joga lá? E nunca deixaria um jogo da Bélgica a meio — estaria a desonrar Scifo.

E que culpa tenho eu de a BBC ter, nos tempos mortos, Henry, Vieira e Lineker — para mais com óculos à avô Dickensiano — a discutir a Copa? Estou apenas a fazer o que é certo, o que é a minha obrigação. Que digo eu? Alguém me salve, por favor. Não quero morrer. Tenho muito medo de mor — alto, vai começar o jogo da Espanha.

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