Primeira vez

É o melhor filme de Dolan, afirmação que estaremos determinados a desmentir quando estrear em Portugal Mommy.

Foto

Tom na Quinta é o melhor filme de Xavier Dolan, afirmação que se desmentirá no final de 2014 quando estrear Mommy. Não é a facilidade da boutade: Tom na Quinta, quarto filme assinado pelo “fenómeno” Dolan, de 25 anos, é o primeiro assinado pelo realizador Dolan – desta forma também somos desafiados a prescindir do folclore.

Depois do paquidérmico Laurence para Sempre (2012), momento de mais olhos que barriga em que dava sinais de ruir o frágil castelo de cartas que vinha sendo montando como reinvenção autobiográfica e com ambição narcísica – o que nos obrigava sempre a olhar só para ele, mesmo que ele não estivesse no ecrã –, sen­tiu necessidade, contou, de abandonar uma “zona de con­forto”. Encon­trou na peça de Michel Marc Bouchard, huis clos no Quebeque rural, o projecto adequado à urgên­cia que sentia – fil­mar depressa, e a produção durou dois meses.

Dolan interpreta uma personagem que chega a uma quinta para assistir ao funeral do namorado. Aí é engolido por uma espiral de violência, obrigado a sujeitar-se ao “jogo” do irmão do morto (um impressionante Pierre-Yves Cardinal), que quer esconder da mãe (Lise Roy) a homossexualidade do irmão/filho.

Dolan adaptou a peça com o autor, e poder-se-ia julgar que acrescentar cenas ao cenário original – sair da cozinha da peça, no fundo – foi a démarche do costume. A verdade é que não se tratou tanto de acrescentar, de fazer sair o filme do huis clos para ser menos teatral, mas de sair para o regresso ao interior ser mais tenso e claustrofóbico. É isso o que faz com que soprem sobre as convenções teatrais (e sobre as convenções do filme do género: o thriller) rajadas de medo, desejo e autodestruição, sentimentos e pulsões que nunca se avistaram assim nos filmes ante­ri­ores de Xavier.

Thriller

? Filme de género? E qual deles, aquele ou o melodrama?

Uma das coisas mais bonitas é Tom na Quinta pendurar o espectador numa espécie de virgindade perante a invasão do desejo, deixando-o sem capacidade de nomear o que vê – logo, sem fechar a experiência num género reconhecível (mas, sim, pode ser um thriller). Uma das coisas mais definidoras da personagem interpretada por Dolan é a sua incapacidade de nomear o que sente (carta ao namorado, início do filme...), de nomear depois o que (não) se fixa entre ele e a personagem de Pierre-Yves Cardinal. É um filme sobre o desejo que acontece entre os dois ou é um filme-denúncia de uma relação violenta num Canadá “profundo” que condensa os reaccionarismos que deixamos que se abatam sobre nós? O espectador é levado pelo movimento em fuga (e nada em falso), e só pára, e só percebe o que viu, quando a personagem de Dolan toma consciência do que lhe aconteceu. A melhor sequência de todos os filmes de Xavier está aqui: a violência nos campos de trigo. O tour de force é puramente cinematográfico, o exibicionismo (e o narcisismo) ausenta-se porque ela nos faz experimentar, precisamente, a impossibilidade de controlar uma narrativa – já começou e vai continuar sem nós.

Xavier Dolan encontrou no simulacro de filme de género uma possibilidade de disciplina para recomeçar de novo. No filme que fez a seguir, Mommy, há um back to basics, regresso a uma relação fundadora – a Mãe – mas agora transcendendo a birra autobiográfica que estava na sua estreia, J’ai Tué Ma Mère. Mommy, o quinto, é o melhor filme de Xavier Dolan.

 

 

Sugerir correcção
Comentar