No ginásio, na rave, no YouTube, no museu: somos todos performers

The Stages of Staging: Museum Version, a peça-maratona da coreógrafa suíça Alexandra Bachzetsis, chega hoje a Serralves

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Mellanie Hofmann

Cinco horas no museu, das 12h às 17h: Alexandra Bachzetsis (Zurique, 1974) sabe que está a exigir muito aos espectadores de The Stages of Staging: The Museum Version. Sabe que lhes está a exigir mais de metade de um dia de trabalho, mais do dobro de uma maratona, mas também sabe que cinco horas no museu não são nada comparadas com o tempo que uma significativa parte da população do mundo dito desenvolvido anda há anos a queimar (sem juízos de valor: é literal) no ginásio. A duração da peça que hoje apresenta em Serralves, diz ao PÚBLICO a coreógrafa suíça, subverte as convenções do teatro e da dança não só para as aproximar das convenções – ou pelo menos dos horários – do museu, mas também para sublinhar (e agora sim, com juízos de valor) esse excesso de treino individual, obsessivo, que continua a espantá-la, no bom e no mau sentido.

Rodeados de tapetes, bolas e outros acessórios para a prática de exercício, os dez performers de Alexandra Bachzetsis parecem estar num ginásio. Mas este ginásio que por cinco horas se instala no Museu de Arte Contemporânea de Serralves é declaradamente uma metáfora de um tempo muito particular que a coreógrafa suíça nem sequer sabe muito bem quando começou – para ela, o paradigma do personal trainer é talvez a manifestação mais visível “do uso exagerado e intensivo do corpo que hoje se tornou dominante” e do escapismo muito forever young que lhe anda associado, mas há outras. “O treino obsessivo é uma prática de facto muito egoísta, muito auto-centrada, que me interessava retratar aqui. Trabalhámos a partir de exercícios e movimentos típicos de desportos como o futebol, o ténis, o basquetebol e o boxe, mas também de modalidades mais recentes como o pilates – e propositadamente trabalhei muito com os performers individualmente, um a um, e muito pouco com o grupo. Durante a peça é muito comum eles estarem a fazer coisas ao lado uns dos outros, mas completamente sozinhos”, explica.

O ginásio, de resto, foi só um trampolim: The Stages of Staging apropria-se de outros modos contemporâneos de utilização do corpo (a cultura rave de Manchester, o videoclip…) que aparecem samplados e remisturados nesta performance tão banal quanto espectacular. Sim, a peça de Alexandra Bachzetsis é sobre o modo como estamos constantemente a encenar a nossa própria presença em público – no ginásio, na rave, no supermercado, na cama, em todas as situações do dia-a-dia, sobretudo nestes tempos em que qualquer gato a miar (desde que muito fofinho) pode ser uma estrela com milhões de visualizações no YouTube. E sim, a peça de Alexandra Bachzetsis também é sobre o modo como essa disposição permanente para o palco, para ser o centro das atenções, é o trabalho do performer, a maneira que tem de ganhar a vida.

A diferença, insiste a coreógrafa, é que enquanto na vida real cada um tem alguma margem manobra para decidir como quer mostrar-se, aqui é ela a encenar todos os movimentos dos performers. “Este trabalho começou como uma vontade de reflectir sobre questões de auto-encenação, de auto-representação – e claro que essas questões arrastam consigo outras, sobre as aspirações do indivíduo no contexto do grupo, sobre a sua inscrição numa paisagem colectiva, sobre os modelos de colaboração numa comunidade de pessoas. Mas não há nenhum fragmento de auto-encenação aqui: todos os retratos individuais que compõem The Stages of Staging foram coreografados por mim do princípio ao fim.” Talvez isso torne mais evidente aquilo que Alexandra Bachzetsis tinha na cabeça desde o primeiro minuto: “O direito que temos a encenar-nos é também o direito que temos a falsificar-nos. E para mim o falso é um conceito fascinante.”

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