A ricofobia portuguesa

Os portugueses têm uma neurose com o dinheiro dos outros. Nunca perguntam a ninguém “quanto é que ganhas?”. Porque acham isso uma indelicadeza. Mas não hesitam em lançar suspeitas e em emitir juízos de valor sobre os que vivem bem 

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Sergei Karpukhin/Reuters

Os portugueses têm uma neurose com o dinheiro dos outros. Nunca perguntam a ninguém “quanto é que ganhas?”. Porque acham isso uma indelicadeza. Mas não hesitam em lançar suspeitas e em emitir juízos de valor sobre os que vivem bem e exibem um estatuto social melhor que o deles. Há quem chame a isto inveja. Eu chamo ricofobia.

Quem nasce rico é um betinho que “não sabe o que é a vida”. Porque “teve a papinha toda feita” e beneficiou da “boa educação e influências da família”. O betinho até pode multiplicar por 100 o património que herdou. Ou descobrir a cura para o cancro. Mas o ricofóbico dirá sempre: “o gajo era rico e assim também eu”. Um betinho nunca tem uma história de vida. Porque nasceu rico. E isso explica tudo: o sucesso dele, o insucesso dos outros e até “o estado a que o país chegou”. Porque em Portugal, diz-se, “há muito dinheiro, ele está é mal distribuído”. E a culpa é sempre dos ricos.

Mas o clímax da ricofobia é atingido quando alguém que nasce pobre ou remediado, comete a desfaçatez de ascender a uma classe mais alta. Estes alpinistas sociais nasceram no mesmo bairro periférico e frequentaram a mesma escola pública que o ricofóbico. Mas a idade adulta trouxe-lhes destinos diferentes. Enquanto o ricofóbico ficou no bairro da Amadora, o alpinista foi morar para Campo de Ourique ou trabalhar na City de Londres. E é precisamente isso que faz comichão ao ricofóbico, que se questiona: “Como é que ele conseguiu e eu não?!”

Rodeado por tantos casos mediáticos de enriquecimento ilícito, o ricofóbico tende a julgar todos os alpinistas com a jurisprudência da trafulhice e das cunhas. Esquecendo-se dos infinitos exemplos de portugueses que construíram, do nada, carreiras justas e negócios limpos de sucesso. Mas para estes, o ricofóbico tem outro veredicto: “são uns fora de série”. É curioso que no julgamento ricofobiano não exista um meio termo. Não existem alpinistas normais. Ou são canalhas ou são geniais.

Resumindo, aos olhos do ricofóbico, um português bem na vida tem 3 hipóteses de currículo: ou já nasceu rico (betinho); ou recorreu a ilegalidades (alpinista canalha); ou estava predestinado (alpinista genial). Trabalho, educação, sacrifício e mérito são pouco relevantes. A explicação reside quase sempre no berço, na falta de justiça ou na justiça divina.

Na génese da ricofobia está a ricofilia (o desejo de ser rico). É natural, e até salutar, que todos os portugueses queiram ser ricos. Mas mais natural ainda, e não menos salutar, é que nem todos o consigam. É que o capitalismo pressupõe a existência de classes. De ricos e de pobres. De patrões e de empregados. E pressupõe também mobilidade social. Ou seja, a possibilidade de os ricos empobrecerem e de os pobres enriquecerem. E é quando a ricofilia esbarra na fraca mobilidade social portuguesa que a ricofobia emerge. Qual grito de revolta numa luta de classes.

Tenho para mim, que os justos vencedores são aqueles que evitam esta estéril luta de classes. E que não se deixam cegar pela ricofobia. E que se agarram à máxima de que o dinheiro é resultado do sucesso e que o sucesso é resultado do trabalho. E que negam a existência de dons ou genialidades. E que apesar de estarem conscientes que o berço é importante e que o sistema não é perfeito, sabem que isso não determina, nem deve resignar, o futuro de um Homem.

Afinal de contas, a mobilidade social fica mais fácil quando os mais ricos criam oportunidades para todos. E é normal que estes prefiram dar as oportunidades a quem os valoriza e não a quem os diaboliza.

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