Alienação, uma palavra esquecida

A lógica de quantificação do mundo que se exprime no anúncio de que determinada instituição artística bateu mais um recorde de público obriga a reutilizar um conceito caído em desuso

Num momento em que, no seu boletim de Maio, o Arts Management Network — uma das mais importantes redes internacionais de programadores, curadores e directores de museus — anuncia que os concertos e as óperas estão a perder audiências na Europa, e em que para superar esta situação propõe novos programas de formação cultural, o que quer dizer uma organização artística quando anuncia ter batido mais um recorde de públicos? 

O que significa — exactamente — ter 150 mil visitantes num museu ao longo de um ano, ou 100 mil pessoas num concerto, ou 20 espectadores numa sala de teatro? Na verdade, significa várias coisas, muitas delas contraditórias entre si. Significa, por exemplo, que quem propagandeia este tipo de “recordes de bilheteira” se baseia numa ideia de quantificação do mundo segundo a qual o valor se determina apenas avaliando o retorno em mais-valia financeira imediata ou mediata de uma parcela, ou de uma soma de consumidores. Essa quantificação do mundo faz parte da ideologia que vê nos cidadãos apenas consumidores, seja de bilhetes de entrada em museus ou em concertos, seja de produtos de supermercado ou de produtos financeiros ou de programas de televisão. 

A lógica é a do consumo do entretenimento, mesmo que as experiências de arte ou de cultura científica ou artística o possam não ser. Ainda assim, o envelope, se assim se pode dizer, ou a mensagem — o marketing utilizado —, apregoa que tudo o que é “cultura” (assim dito) é entretenimento. 

Ora, nunca é excessivo lembrar que existe algo de profundamente diferenciado entre o consumo das massas e a recepção crítica ou a fruição (que, admitamos, tem vários níveis). O entretenimento fundamenta-se na ideia de um gosto o mais comum possível — e a todos é legitimo o apreço pelo gosto, para evocar Kant —, mas o consumo baseado apenas no gosto é do domínio do básico na condição humana. Acresce que o entretenimento se realiza por operações de produção, encenação e acesso cujo objectivo é “matar” tempo. 

Quando se anuncia que um milhão de pessoas — ou 150 mil — “mataram tempo” entretendo-se, estamos no domínio do desgaste de um bem precioso que dessa forma é cedido aos promotores dos espectáculos de massas num processo que uma palavra hoje em desuso explicava muito bem: alienação. 

O sujeito aliena o seu tempo, a sua energia, a sua esperança de vida em função de algo exterior que o consome; o seu bem — o tempo — já não lhe pertence, é propriedade dos promotores dos espectáculos de entretenimento que vendem ao consumidor o tempo que originariamente era o seu para que este o “mate”. Quer isto dizer que um espectáculo ou um concerto que só tem 200 pessoas ou um livro que só vende 100 exemplares não são alienantes? Com certeza que não. Mas diz-nos o conhecimento empírico que fora do domínio de propostas de massificação e de uma relação baseada apenas no consumo, mais difícil será dar-se a referida alienação. O consumo massificado, que não é coincidente com o desejo de partilhar (comum a um número importante de pessoas) um concerto, um livro, um filme, tem escondidas duas das faces mais destruidoras do sistema capitalista: o lucro sem limites e a linguagem parasitária. 

Sobre o lucro infinito, importa saber que nenhum espectáculo, de nenhuma natureza, se paga com a receita de bilheteira. Os espectáculos são subsidiados pelos Estados com políticas sociais — ainda o sistema mais transparente e mais justo — ou então são pagos pelos patrocinadores. Muitas das vezes já estão pagos pelos patrocinadores antes, até, de acontecerem. E porquê? Porque os custos dos patrocínios são baixos comparativamente aos custos da promoção em suportes tradicionais. E porque esses custos são anexados aos custos dos produtos que o patrocinador vende. Nada é oferecido pelo patrocinador, mesmo quando, em situações raras, há uma ideia de partilha (geralmente pessoalizada na figura de um patrocinador).

Quanto à linguagem parasitária, repare-se como os produtores dos espectáculos de entretenimento introduziram na linguagem do quotidiano termos como “consumo”, “evento”, “brindes”, “promoções”, “happy hour”, assim contagiando o quotidiano da experiência estética, da fruição ou da criação artística com a terminologia própria das grandes superfícies comerciais. Neste tipo de recordes de bilheteira há também números políticos. Ter mais ou menos “entradas” — o que não é coincidente com bilhetes vendidos — significa possuir um “capital” político que faz com que se mantenha um gestor, um programa, uma organização dependente da administração pública, por exemplo.

Finalmente, há ainda uma questão — e esta é do domínio das vulgatas da Estética segundo as quais o confronto entre entretenimento e consumo de massas e uma recepção mais crítica e mais activa por parte do espectador seria o confronto de formas contemporâneas de hedonismo com o intelectualismo. Este é um falso confronto. 

Se, nos grandes espectáculos de massas — concertos ou exposições blockbuster —, os consumidores se identificam uns com os outros como uma tribo alargada que se entre-reconhece pelo uso de figurinos da última moda, aparentemente sem clivagens de natureza política e unida pelo prazer de “ali estar” a “matar tempo” e a expor a sua graça num movimento em que cada um é o espelho do outro, este hedonismo pouco tem a ver com o culto da beleza — e falta-lhe uma oratória convincente para tal culto. Do outro lado, o intelectualismo pode ser apenas uma expressão de prazer e de gratidão, de entendimento da densidade e da complexidade das obras, pois, afinal, para ter prazer é preciso saber.

O mesmo boletim da Arts Management Network indicava como razões para a perda de espectadores o preço dos bilhetes e o desinteresse crescente deste tipo de espectáculos. Não saberemos bem a que tipo de espectáculos se referem, mas é certo que há tempos que se observam minorias de espectadores cansados dos mesmos espectáculos e concertos que se repetem temporadas após temporadas. Procuram algo que os desaliene dos seus dias de trabalho, devolvendo-lhes o tempo que não possuem. E por outro lado cresce o número de festivais, bienais, mostras para os grandes públicos, isto enquanto museus e casas de concertos e editoras disputam sucessos e recordes de públicos-consumidores a quem prometem um mundo de entretenimento fácil. Entre estes dois mundos se vai jogar a criação e a recepção artística nos próximos tempos; e também a alienação da arte, da política, do viver em comum.

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