Uma história de reis e príncipes

Estavam à espera de quê: que os espanhóis assistissem sentados a uma história de reis e príncipes?

“Felipe acelera, que viene la Tercera!”, gritam os manifestantes espanhóis que reclamam a III República e contestam, sem pejo algum, a chegada ao poder de um novo Borbón. A questão do regime regressa: porquê?

A monarquia foi a escolha de Franco, não do povo espanhol. Da mesma forma que Afonso XIII (avô de Juan Carlos) já em 1923 escolhera a ditadura militar. Forçado a abdicar, proclamou-se a II República espanhola, que vinha contrariar a vaga fascista que varria a Europa da Grande Depressão. Em 1936, as direitas lançam-se num golpe de Estado contra a república, mas a resistência popular impede a vitória dos militares dirigidos por Franco, que só venceria a guerra civil com o apoio de Hitler, Mussolini e Salazar. Com a vitória aliada de 1945, Franco, isolado, saca da cartola o coelho da monarquia e proclama, em 1947, que a Espanha volta a ser um reino – mas sem rei. A opção era meramente formal: o ditador escolhe o filho de D. Juan (que faz educar sob os seus auspícios) para se sentar no trono, mas só depois da sua morte. Em 1975, quando chega ao poder, Juan Carlos não tinha outra legitimidade que a desta escolha e a de ter jurado os Princípios do Movimento Nacional, o arremedo de Constituição do franquismo. Herda um regime em “crise irreversível, fruto do imparável crescimento da dissenção e da sua própria decomposição interna”. Tem-se procurado impor um relato, muito mais digno da revista Hola do que de qualquer livro de História, de uma transição democrática espanhola livremente decidida por um rei bem-disposto, ajudado por um primeiro-ministro moderno (Suárez), que, depois de anos de fidelidade à ditadura (um como herdeiro do ditador, o outro como chefe do partido único), se decidem, cumplicemente, a desmontá-la e a instaurar a democracia. Mas não foi assim: Juan Carlos e Suárez não tinham escolha. A democratização foi imposta por quem se mobilizava na sociedade espanhola exigindo o fim da ditadura. Desde os anos 60 que se vivia “um ciclo de conflitualidade laboral que (…) seguiu uma linha continuamente ascendente e comportou a rutura da ordem social e da ordem pública pela contínua transgressão da legalidade por parte de setores significativos da classe operária” (Pere Ysàs, in La Transición treinta Años después, pp. 57, 34). Dos 700 mil grevistas de 1974 e 1975, passou-se aos três milhões de 1976 e 1977. Greves gerais regionais (1974 e 1975) assumidamente políticas, convocadas pelas Comisiones Obreras (dirigidas pelos comunistas) e por outros movimentos sociais, uma espiral de atentados da ETA e da FRAP e da repressão policial e militar que levam às execuções de setembro de 1975, as quais, em vez de reforçar a consistência do regime, conduzem à sua gradual decomposição política e ao agravamento da sua rejeição internacional. Ao movimento operário e às guerrilhas urbanas (que já haviam conseguido assassinar, em 1973, o homem que Franco tinha querido impor como chefe do Governo, Carrero Blanco) somam-se os estudantes, o mundo da cultura, bascos, catalães e galegos que reivindicam direitos próprios, uma ampla dissidência católica, muito superior à portuguesa.

A velha tese, hoje papagueada pelos discursos oficiais, de que rei e monarquia teriam ganho legitimidade própria na condução do processo que levou às eleições de 1977 e à Constituição de 1978, ou na sua oposição ao golpe militar de 1981 (perante o qual, ambiguidades à parte, houve tanto de inevitável quanto houve na democratização), resulta de uma leitura puramente ideológica dos processos de mudança políticos que, por oposição à Revolução portuguesa, elogia na Transição espanhola o relativo controlo que as elites teriam conseguido preservar relativamente às reivindicações sociais e políticas de um povo que exigia muito mais do que aquilo que acabou por conseguir: a amnistia dos presos políticos e o regresso dos exilados (a troco da impunidade dos crimes franquistas), a liberdade de associação e de expressão, uma descentralização autonómica que, contudo, não conduziu a nenhuma federalização da Espanha, muito menos reconheceu qualquer direito à autodeterminação dos seus povos. Ou sequer o direito a que os espanhóis, 40 anos depois da guerra, pudessem votar entre o monarca escolhido por Franco ou uma nova república.

Enquanto a direita portuguesa dispara sobre a nossa Constituição, porque ela ainda protege uma parte dos direitos sociais que se conquistaram com a Revolução, a grande maioria (dizem as sondagens) dos espanhóis querem, contra a sua Constituição, poder escolher entre essa coisa tão básica como ter um chefe do Estado hereditário ou um eleito. Em ambos os casos, demonstra-se bem como a política neoliberal que produziu a crise social e económica (de que quer parecer ser apenas consequência) está a desestabilizar os regimes políticos. Em Portugal, o poder político e económico ataca a democracia social e todos os direitos constitucionais em nome da “austeridade”. Em Espanha, agarra-se aos tabus que a ditadura deixou como legado (monarquia, unidade nacional), ao mesmo tempo que rompe todos os compromissos mínimos com os direitos das pessoas. Estavam à espera de quê: que os espanhóis assistissem sentados a uma história de reis e príncipes?

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