As coisas e os seus nomes

Uma prática artística organizada em torno da ideia de segredo: o trabalho da Musa Paradisiaca

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Eduardo Guerra e Miguel Ferrão formam a dupla Musa Paradisiaca. Um trabalho a quatro mãos que se tem caracterizado pela construção de dispositivos em que palavra dita, imagem e segredo são os elementos primários. Que todas as obras de arte têm no seu coração um segredo é sabido por todos que experimentam arte e tentam fazer sentido dessa experiência, mas no caso destes artistas esse segredo não é uma consequência ou um efeito das obras, antes um elemento material, estrutural — ou seja, faz arte da lógica construtiva.

Nas histórias que contam, nos diálogos que constroem, nas comunidades que formam, há sempre um elemento a que não se pode chegar. Esse elemento está lá, aos olhos de todos, mas não se torna audível ou visível. Este jogo entre o que uma obra mostra e o que esconde é uma das mais importantes dinâmicas no jogo artístico da dupla. As suas obras são muitas vezes diálogos escutados enquanto se vêem imagens projectadas; outras vezes a palavra dita esconde-se dentro de coisas e fica lá guardada.

Esta exposição — dividida em dois lugares e em dois tempos — é, fundamentalmente, sobre esse segredo e, talvez por isso, os objectos cuidadosamente depostos em plintos metálicos são feitos em breu: uma substância negra usada nos barcos para tapar fendas, matéria viscosa, informe, que se caracteriza pela capacidade de adaptação a todas as formas. Portanto, um material análogo, no sentido em que quando colocado no casco de um barco se transforma no casco do barco, quer aquele seja de madeira ou de metal: artificialmente (o breu não é uma matéria natural), contém em si a possibilidade de todas as formas e de todas as matérias.

Tratam-se pois de objectos caracterizados não só pela sua artificialidade como por um negro essencial. E esta matéria serve para descrever e traduzir objectos reais, mas também para os fazer continuar a existir. Uma persistência dos objectos não por razões formais, estéticas ou retóricas, mas devido à relação que o homens sempre têm com as coisas à sua volta. Os objectos trazidos para estas Audições são muito variados e fazem parte das diferentes comodidades humanas, no sentido em que todos integram a vida e o corpo humanos: são prolongamentos do corpo, feitos dos mesmos átomos e do mesmo vazio que ele, e surgem numa relação de intimidade com os diferentes modos de viver a vida. A máquina, dizem os artistas, é um corpo de sangue e fumos.

Aqui, objecto é uma designação lata para coisas tão distintas como uma planta, uma corda, um componente de um computador, um sapato, os quais, independentemente da sua potência de sentido e de significado, só existem na relação que estabelecem uns com os outros. Os artistas falam em cosmologias, mas também se poderia pensar em famílias de coisas: possuem afinidades entre eles, relações intensas e muito complexas, como em todas as famílias. E como em todas as famílias não se pode determinar com total precisão o modo como cada elemento singular contribui para a formação dessa comunidade: podem ser as semelhanças fisionómicas, as afinidades de sangue, de afecto, de ideias. Mas cada elemento que se junta — cada novo nascimento ou casamento — tem consequências no todo. Esta família de esculturas não está completa, mas faz parte de um trabalho em desenvolvimento a que muito oportunamente os artistas chamam Aumentário.

É importante esclarecer que as coisas chamadas para estas Audições são cópias de objectos reais que convocam, registam e testemunham. A cena composta por estas coisas não se inscreve numa estratégia de ready-made, mas numa lógica de enunciação: chamar as coisas pelos seus nomes; um chamar que transforma cada coisa numa descrição ou numa tradução de um objecto real, mas nunca no próprio objecto. Estão em causa um gesto e uma poética localizados num território incerto entre a descrição, a imitação, a tradução e a composição, elementos indestrinçáveis na coisa tornada arte. E esta precisão é determinante porque incorpora um desvio essencial.

Nestes conjuntos escultóricos há duas presenças fundamentais, Francisco e Nuna. Dois bustos em breu que são os pivots em torno do quais gravitam todas as outras esculturas — materialização das imagens que Francisco e Nuna, quando fecham os olhos para o sono ou para a morte, estão sempre a ver. Essas coisas são elementos de uma comunidade humana: aqui as coisas não são livres do seu nome e daqueles que as chamam.

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