Menos igualdade, se faz favor

A igualdade é óptima, claro. Mas se fosse possível manter também a liberdade, dava jeito.

O argumento mais comum de quem se opõe à revisão da Constituição é este: não vale a pena metermo-nos nisso porque os juízes invocaram nos sucessivos chumbos princípios fundamentais como o da igualdade, que não podem ser retirados de nenhuma Constituição. Já ouvi este argumento ser utilizado por gente de todos os quadrantes ideológicos, incluindo Pedro Passos Coelho e António Costa.

Olhemos então para o princípio da igualdade, referido no artigo 13.º. O ponto 1 diz: “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.” É daquelas frases com que toda a gente concorda. Mas, se quisermos ser uns talibãs da igualdade, a sua formulação dá para tudo. Por exemplo, para defender a igualdade de remunerações na função pública: se todos os cidadãos são iguais perante a lei, por que é que um cantoneiro do Alandroal há-de receber do Estado o salário mínimo, enquanto o Presidente da República recebe 6500 euros? Que igualdade é essa? Não tem o cantoneiro a mesma dignidade social de Cavaco Silva?

Para evitar este alargamento interpretativo desmesurado, o artigo 13.º especifica, no ponto 2, o que se entende por essa igualdade: “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.” E, sendo assim, eu pergunto: este princípio existe para impedir que os salários dos funcionários públicos sejam cortados quando os do privado não o são, ou existe, antes, para impedir que um funcionário público homossexual ou negro ou hindu veja o seu salário ser cortado, enquanto o salário de um funcionário público heterossexual ou branco ou católico permanece intocado?

A resposta, para mim, é óbvia, e é óbvia por um princípio básico de prudência: quanto mais lato é um princípio, mais contido deve ser o seu uso, para não cairmos na caricatura do cantoneiro desigual. Ora, quando essa prudência não existe, como me parece que não tem existido nos sucessivos acórdãos do Tribunal Constitucional sobre os orçamentos do Estado (ainda que, em vários aspectos, contenham objecções pertinentes), só existe uma solução: contrabalançar princípios vagos com normas claras, que exijam constitucionalmente a sustentabilidade do Estado, para evitar que a lei fundamental se transforme numa espécie de bordel hermenêutico, onde cada um entra e se serve à vontade do que mais apreciar.

Não existindo princípios absolutos, eles deveriam ser harmonizados entre si. Só que o Tribunal Constitucional está a fazer interpretações muitíssimo restritas de princípios vagos, e com isso a diminuir radicalmente as opções políticas do Governo. A União Europeia foi sendo enfiada aos poucos na Constituição, mas as exigências da moeda única nunca chegaram a ser constitucionalmente asseguradas. Houvesse moeda própria, e os embates com o TC não se colocavam: imprimia-se dinheiro, os salários mantinham o valor nominal, e o seu valor real era ajustado através da inflação. Sem inflação, é óbvio que têm de existir alternativas ao ajustamento que não passem pelo aumento de impostos. O que não pode acontecer é o que se está a passar neste momento: para efeitos práticos, temos uma leitura da Constituição que impõe uma política única de saque fiscal ao país. A igualdade é óptima, claro. Mas se fosse possível manter também a liberdade, dava jeito.

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