Escondida à vista de todos

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O Porto está cheio de ruas escondidas, vielas esconsas por onde nunca passamos até ao dia em que, por um motivo qualquer, damos por nós a virar na esquina que nunca usámos, a atravessar uma avenida onde nunca atravessáramos antes e, pronto, damos por nós num universo novo e desconhecido, como se tivéssemos acabado de cruzar um qualquer oceano sem destino palpável.

É assim a Rua da Senhora da Lapa. Apesar de estar em frente a um dos edifícios mais conhecidos e visíveis da cidade, a Igreja da Lapa, apesar de começar numa outra rua que é cruzada, diariamente, por milhares de pessoas, a rua consegue fazer-se invisível, como se não estivesse ali. E não é só para quem passa, também no extraordinário mundo da Internet ela consegue fazer-se ocultar.

Quando disse ao Nuno, o ilustrador, qual era o tema desta semana, ele perguntou-me se não me tinha enganado no nome da rua, porque com aquele nome, não lhe aparecia nada na cidade do Porto. No omnipotente Google, tenta encontrar-se uma fotografia da artéria e nada feito, somos enviados para a Igreja da Lapa, para o Brasil, para outros cantos de Portugal, mas nada sobre esta rua em cotovelo, que começa no Largo da Lapa, estende-se por uma dezenas de metros e termina, depois de um corte abrupto à direita, um pouco mais à frente.

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A rua é um mosaico de casas de um e dois pisos, umas mais velhas do que outras, muitas abandonadas

Subi a Rua da Senhora da Lapa pela primeira vez há poucos anos, quando andava a ver o estado em que se encontravam as habitações propriedade da Câmara do Porto. Havia ali algumas casas que pertenciam ao município e fui espreitá-las. Fiquei surpreendida como fico sempre quando me deparo com uma destas pequenas aldeias incrustadas no centro da cidade. A rua é um mosaico de casas de um e dois pisos, umas mais velhas do que outras, muitas abandonadas, onde ainda há roupa a secar à janela e se deixa um prato com comida para os bichos na soleira da porta. Ou um saco com verduras pendurado no portão, talvez para consumo do proprietário, talvez para os animais que ainda se hão-de criar em galinheiros ou coelheiras improvisadas nas traseiras.

De um lado, sucedem-se as casas, algumas entaipadas, outras cerradas a cadeado, denunciando o abandono, outras ainda ensaiando uma reabilitação que parece ter ficado pelo caminho. Do outro lado, a quase todo o comprimento, há um muro. A excepção é um conjunto de casas baixinhas, uma das quais ostenta uma placa indicando que foi legada por António Teixeira de Miranda às juntas de freguesia de Santo Ildefonso e Cedofeita em 1938. Espreitando para lá do muro vêem-se terrenos vazios, a linha do metro e os edifícios altos da cidade que está ali, está em todo o lado, mas parece longe.

A Rua da Senhora da Lapa é cortada por duas outras vias, a Travessa da Senhora da Lapa e a Rua da Glória. Nenhuma tem saída, o que faz daquele conjunto um verdadeiro bairro autónomo com uma só entrada, um condomínio fechado à moda antiga. Mas há ligações entre elas, escadas estreitas que atravessam de uma rua para a outra, deixando ver mais portas de entrada de casas que só podem ser pequenas, pátios com tanques, ilhas dentro desta grande aldeia. Há velhas à janelas e ouvem-se risos de criança por trás de persianas fechadas. O trânsito intenso da Rua de Antero de Quental e do Largo da Lapa é uma banda sonora de um outro mundo.

Morar ali deve ser um suspiro de alívio, de deixar a cidade longe assim que se fecha a porta da rua. Mas também deve ser uma tristeza de esperar por dias melhores que nunca mais chegam, para quem habita nos pedaços de casa que por ali se foram arranjando, transformando em aconchego o que é pouco mais que um tecto sobre a cabeça.

Olho para a Rua da Senhora da Lapa e imagino como ficaria se todas as casas fossem arranjadas, se todas fossem habitadas. E fico a pensar como é que se faz isso sem retirar o manto de invisibilidade que parece pairar sobre o local. E depois não posso deixar de questionar se sou só eu que gosto deste afastamento do resto da cidade. Deste sossego enganador, porque tudo o que é a agitação do Porto está mesmo ali ao pé. Mas acho que não. Acho que poder acordar de manhã e escolher se se vai ficar na aldeia ou dar um saltinho à cidade ali ao pé deve ser privilégio.     

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