No NOS Primavera Sound há que escolher, há que ter a sorte de estar no sítio certo

Ao segundo dia de festival, sexta-feira, abriram-se os quatro palcos e multiplicaram-se as escolhas. Num deles, os Pixies deram um concerto apenas competente e o protagonismo coube aos Pond e aos Föllakzoid.

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Não é novidade, e certamente que não o é para quem está habituado ao NOS Primavera Sound e à sua programação. Por vezes, não é onde encontramos a maior concentração de público, não são os nomes de maior destaque em cartaz a deixar marcas mais profundas. Há que fazer escolhas, aproveitar a existência de vários festivais possíveis quando os quatro palcos do festival se abrem em simultâneo (quinta-feira apenas dois acolheram concertos). Assumimos que assim é.

Um NOS Primavera Sound, dois festivais. Um está nesta página, vivido por quem a assina. O outro às deambulações de Vítor Belanciano. Nenhum dos festivais se cruzou. Avancemos por um deles.

Neste, tínhamos Pixies como cabeças de cartaz (mas um concerto simplesmente competente soube a pouco) e não podíamos perder os históricos Television, reis literatos do punk nova-iorquino, a interpretar esse álbum magistral chamado Marquee Moon (mas a presença da banda perante nós não apagou a memória do disco, que soa mais vivo, mais pungente que a sua interpretação em palco, hoje). Procurando, porém, descobriríamos uns chilenos mestres da nobre arte da repetição em contexto rock (aponte-se o nome as vezes que forem necessárias: Föllakzoid), perceberíamos que há realmente algo de especial na água de Perth (os Pond, banda paralela aos Tame Impala, são igualmente um portento ao vivo) e que não foi má ideia os Loop, outros mestres da repetição, neste caso seguidores da Bíblia Spacemen 3, reunirem-se duas décadas depois para aterrarem um dia num palco no Parque da Cidade, no Porto. Ao início da madrugada, sem procurar, também nos depararíamos com os Mogwai, mas os bons escoceses tocavam quando o grosso da multidão já dispersara depois dos Pixies, escolhendo recolher a casa ou procurar o que havia disponível nos restantes palcos – ou em palco nenhum, que o pequeno refúgio equipado com bancos e baloiços só pode ser apelativo depois de horas de deambulação entre concertos.

Os Pixies, a banda de Frank Black, eram o grande destaque do segundo dia de festival, sexta-feira, e foi por eles que o espaço junto ao palco principal se encheu de gente como ainda não tinha enchido. A banda de Boston tocou as canções todas que todos queriam ouvir, as da sua primeira vida, e tocou aquelas que ninguém desejava realmente que tocassem, as da sua nova vida preservada em Indie Cindy, álbum editado este ano. Ainda assim, mesmo que Joey Santiago tenha destruído um bouquet de flores esfregando-a contra as cordas da guitarra para efeito cénico e sonoro (“flower power sucks”, já cantava Frank Zappa), mesmo que Where is my mind ou a inefável Here comes you man tenham provocado um sobressalto momentâneo (gritos de reconhecimento, uns passos de dança, braços ao alto), faltou chama e vivacidade ao regresso dos Pixies ao Porto, vinte e três anos depois.

Não foi por eles que a criança que brincava entre as pernas do pai com os protectores auditivos colocados, acabaria por tirá-los e desafiar o homem mais velho e bem mais alto à sua frente (o pai, precisamente) para uma sessão de boxe que não chegou a acontecer. Não, não foi pelos Pixies, que tocaram quando já passava das 22h30. A criança libertou-se do espartilho (apelemos ao romantismo) porque a isso a obrigou a intensidade da música que se ouvia no Palco ATP, na zona alta do recinto, quando pouco passava das 18h e o céu cinzento ainda assustava (mas não era necessário enfiarmo-nos em impermeáveis – isso fora horas antes). A criança fora libertada (continuemos imbuídos de romantismo rock’n’roll) pela música de quatro chilenos crentes no poder redentor da repetição. Chamam-se Föllakzoid e deram um concerto irresistível perante algumas centenas.

Um guitarrista com ar de skater americano adolescente a tocar de olhos fechados, hipnotizado pelo som que o envolve. Um baterista que é uma impressionante máquina de ritmo minimal. Um baixista com boné e cabelo sobre os olhos, a cantar palavras que reverberam sem que as compreendamos devidamente. Um homem dos teclados que faz sobrevoar sobre a música corpos espectrais. Föllakzoid: o legado da motorika dos Neu!, aquele psicadelismo mecânico e envolvente criado nos anos 1970, a frutificar no Chile. Dez, quinze minutos para cada canção. Quanto? O tempo é acessório – podíamos estar ainda agora a ouvi-los, que esta música é potencialmente interminável.

Enquanto no palco Super Bock, pelas 19h, os Midlake mostravam o seu folk-rock nas redondezas dos Fleet Foxes, deitava-se o olhar ao cenário no relvado que serve de plateia e assinalava-se a ausência dos sacos-mantas quadriculados que decoravam o espaço no dia anterior – o “look” de sexta-feira foi o impermeável chic, culpa da chuva que caiu pela manhã e do céu que não assegurava que não voltasse a cair. Passava-se pelos Midlake para regressar. No palco ATP, esperavam-nos os Television. Mais. Naquele palco, esperavam-nos os Television a tocar Marquee Moon, álbum maior. Menos: estavam lá Tom Verlaine, o baixista Fred Smith e o baterista Billy Fica, mas faltava um dos originais, Richard Lloyd, substituído há alguns anos pelo guitarrista Jimmy Rip. Mais ou menos: o público queria muito entusiasmar-se e recebia cada canção do álbum histórico, como Friction, Venus ou esse tesouro chamado Marquee moon, obrigatoriamente a última do concerto, com gritos de reconhecimento, mas algo falhava na vida dada àquela música. Quando vimos os regressados Stooges pela primeira vez, em 2004, a banda de Iggy Pop carregou a vitalidade das suas canções imaculada, quatro décadas depois. Com os Television, apesar da dignidade do concerto, apesar de ser um prazer acompanhar aqueles jogos de guitarra inconfundíveis, nunca nos abandonou a sensação de que estávamos, na verdade, a celebrar algo que já foi – sensação frustrante, tendo em conta que o álbum, ouvido hoje, soa tudo menos anacrónico. Não, o segundo dia de NOS Primavera Sound não estava talhado para os clássicos. Veja-se os Television. Veja-se, um par de horas depois, os autores de Here comes your man.

Não é fácil definir o que diferenciará um bom concerto dos Pixies de um concerto pouco interessante dos Pixies. Afinal, o processo será exactamente o mesmo em ambas as situações. A banda surge, toca canção atrás de canção sem grandes pausas (por vezes, sem pausas nenhumas), o movimento em palco será mínimo, Frank Black berrará quanto tem que berrar, atirará os demónios cá para fora (ou as memórias dos demónios de outrora) quando o momento o exige, David Lovering atacará as peles com precisão impoluta, a nova baixista Paz Lenchantin manterá a elegância na pose e Joey Santiago estará razoavelmente discreto no seu canto até decidir pegar num bouquet e tornar-se um inesperado guitar-hero nihilista – aconteceu sexta, não sabemos se acontece sempre. Assim, canção após canção até completar quase três mãos cheias delas, teremos mais um grande concerto ou só mais um concerto dos Pixies.

No NOS Primavera Sound 2014 tivemos a segunda hipótese. Apesar de Debaser, de Monkey gone to heaven ou de Nimrod son, apesar da voz rasgada de Frank Black, olhos semicerrados para que o grito catártico lhe fique vincado no rosto, e apesar de a banda estar totalmente rotinada em canções que veste como se fossem uma segunda pele (ou precisamente por isso), o concerto de uma das bandas mais influentes da passagem da década de 1980 para a de 1990 não encheu as medidas. Simplesmente mais um concerto dos Pixies. O mero reconhecimento da obra, ainda para mais no espaço amplo de um festival, não foi suficiente para o tornar um dos destaques do NOS Primavera Sound – quando até o “crowd surfing” parece acontecer a medo e em câmara lenta é porque algo falhou.

Sexta-feira, o segredo não estava tão exposto aos olhos de milhares. Até porque depois dos Pixies os escoceses Mogwai, actuando quando muito público já dispersara e parte do que ficara preferia o conforto de sentar-se na relva, fizeram não mais que a habitual dinâmica pós-rock de tensão-libertação, acrescentando aos turbilhões eléctricos sintetizadores ambientais e ritmos electrónicos. Interessantes, certamente, mas não o suficiente para aquele espaço (a sua música convive melhor com espaços fechados), àquela hora (início às 1h25). No segunda dia de NOS Primavera Sound, deliciámo-nos primeiro com o psicadelismo dos Föllakzoid e confirmámos horas mais tarde, quando a noite já caíra sobre o Parque da Cidade, que os Pond são tão explosivos ao vivo quanto os discos prenunciam – e que há muito público a segui-los fervorosamente por cá.

A banda de Perth é uma amálgama onde cabe o glam de Bowie e Marc Bolan e o hard-rock dos Black Sabbath, tudo polvilhado de pó espacial e oleado com groove de quem não desdenha um pé de dança – não se fez uma breve citação a Michael Jackson por acaso. Cada um dos músicos em palco é uma personagem, começando por Nick Albrook, o pequeno e louríssimo vocalista e guitarrista de voz andrógina. Cada um dos cinco é um músico talentoso que faz de cada canção um parque de diversões. É no melhor sentido que o dizemos: criam música complexa mas incrivelmente fluída, densa de elementos mas nunca sobrelotada. Enquanto o crowd surfing se sucedia freneticamente e o rapaz ao nosso lado cantava as canções todas de Psychedelic Mango ou de Hobo Rocket que a banda ia apresentando; enquanto a banda ia sorrindo um sorriso cada vez mais aberto e ia deixando que o entusiasmo a contaminasse, começava a parecer alta a probabilidade de ser ali, no “pequeno” palco ATP, que se viveria o melhor momento do segundo dia de festival.

Àquela hora, era apenas isso, uma possibilidade. Faltavam ainda Pixies, Mogwai ou Loop. Como é sabido, no Primavera Sound só temos uma certeza: aconteça o que acontecer, iremos deparar-nos com os Shellac de Steve Albini. São a banda residente do festival, repetentes no cartaz a cada nova edição, e lá estavam, duas horas e meia da madrugada, a oferecer ao público no palco ATP o seu punk-rock nervoso, de groove esquálido e guitarra cortante, agradecendo a todos os que haviam esperado para os ver e ironizando com frase famosa de outros festivais. “Se todos quisermos muito, conseguimos parar a chuva.” Foi originalmente proferida do palco de Woodstock, em 1969, durante o dilúvio que deu aura messiânica ao famoso festival. Às 2h30 da manhã de uma noite de Junho, no Parque da Cidade, no Porto, não caía chuva alguma que fosse preciso parar.

Esperamos que se mantenha assim sábado, dia 7, o do encerramento do festival com concertos dos The National, St. Vincent ou Charles Bradley.

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