Notas de biologia aplicadas aos exames nacionais do 4.º ano

Nestes exames (ano 2013/2014) há demasiadas perguntas para adultos pequenos.

Uma criança não é um adulto pequeno. Assim começaram ao longo do século passado inúmeras aulas de medicina, de psicologia e de pedagogia. Um aforismo que, quando eu iniciei a clínica, era quase um déjà vu, ambicionava-se o mais além.

Mas hoje há que o recordar na vida pública. E aqui o recordo a propósito dos exames de 4.º ano e de 6.º ano, em voga por imposição ministerial desde 2013.

Uma criança não é um adulto pequeno e fazer exames a crianças de 9/10 anos e de 11/12 anos não é como fazer exames a jovens universitários/pré-universitários, mas com conteúdos mais fáceis.

Porquê?

Felizmente a resposta não reside em convicções pessoais ou em repetições de tragédias geracionais (como “no meu tempo... todos sobrevivemos ao exame da quarta classe”). A resposta reside na biologia, nas neurociências, na pediatria, na psicologia.

Como assim?

Muitíssimos autores sublinham as diferenças biológicas das crianças. Eu cito Stephen J. Gould (1990), quando nos fez refletir no popular livro O Polegar do Panda acerca da evolução que sofreu a imagem do rato Mickey nos últimos 50 anos, depois de a opinião pública americana pressionar para que o rato, de comportamento por vezes quase cruel, se fosse transformando no rato politicamente correto que hoje conhecemos. À medida que as arestas da personalidade de Mickey se foram limando, a sua aparência foi-se tornando mais jovem, bebé até. Assim mudou a biologia do rato — “o tamanho do olho de 27% para 42% do tamanho da cabeça, o tamanho da cabeça de 42,7% para 48,1% do comprimento do corpo e a distância do nariz à parte anterior da orelha passou de 71,7% para uns colossais 95,6% da distância do nariz à parte traseira da orelha”.

As proporções entre as diferentes partes do corpo são muito diferentes nos adultos e nas crianças. E a elas correspondem diferentes estadios de maturação dos órgãos internos, nomeadamente do cérebro.

Também no desenvolvimento do sistema nervoso central (que inclui o cérebro) a ontogenia repete a filogenia. A formação embrionária do sistema nervoso central e a sua maturação pós-natal são um percurso longo, complexo, maravilhoso.

Este caminho biológico, fisiológico, que ainda se observa nos anos do ensino básico (Volpe, 2008), justifica muitas diferenças no funcionamento de uma criança e de um adulto, que se repercute na cognição, na capacidade de abstração, concentração, interpretação, argumentação, etc.

A estrutura do cérebro do adulto contempla, de forma geral, 10 (12) neurónios, cada neurónio integra uma rede de transmissão de informação. Curiosamente, a maturação do cérebro desde o bebé recém-nascido faz-se por mecanismos seletivos de morte celular (nascemos com mais neurónios do que morremos) e de estabilização sinática seletiva. Quero dizer que a idade e a maturidade nos trazem boas e estáveis redes de comunicação cerebral — mas é durante a infância que as vamos maturando, escolhendo, construindo.

Nestes exames (ano 2013/2014) há demasiadas perguntas para adultos pequenos. Todos os pedagogos sabem que um exame que se apresenta a uma criança não deverá "ter rasteiras", para ver se caem (vide só a título de exemplo a pergunta inaugural do exame de 4.º ano de 2014), porque estas rasteiras tão elaboradas estão completamente desfasadas da capacidade de leitura de segundas intenções de uma criança de 9/10 anos (as tais sinapses...).

Da mesma forma, a capacidade de concentração de crianças desta idade não é como a dos adultos, e não é um lanchinho de 15 minutos com um leitinho com chocolate pelo meio que basta para colmatar a diferença. Quando ao fim de 95 minutos de prova (com intervalinho em que não se podem mexer muito) se propõe a um menino (de novo a prova de português de 4.º ano de 2014) que crie um texto com um enunciado em que as palavras sol e girassol se entrecruzam nas linhas e se enredam... estaremos a testar a capacidade literária do menino ou a atenção? Quantos trocarão sol com girassol? Valerá a pena testar a atenção nestas circunstâncias? Não haveria outro elemento natural disponível para o diálogo que evitasse a confusão natural? (Assim lá caíram mais alguns na rasteira...)

São também requisitos essenciais para o crescimento e aprendizagem a segurança das crianças, a capacidade de olhar, escutar e estar calmo, ao mesmo tempo que (se) mantém (nelas) o interesse e a empatia pelo mundo que as rodeia (Brazelton, Greenspan, 2003).

Estes são também, naturalmente, os requisitos para a aferição de conhecimentos. Também aqui assistimos a uma enorme confusão nas regras impostas. Crianças tão pequeninas deslocadas em autocarros, desgarradas do seu meio onde aprenderam durante quatro anos, afastadas dos seus professores, despendendo uma enorme energia na adaptação a espaços novos, vazios, onde têm de entrar apenas com duas canetas de tinta preta. O que avaliamos? A resistência? A capacidade de sobrevivência num bootcamp? Virão estas capacidades enormes de adaptação à adversidade (e aliás só testadas no nosso país) ponderadas nos critérios de pontuação da prova? Ou talvez seja apenas um sofrimento inútil.

Creio que será difícil encontrar um único autor conceituado em qualquer área científica ligada ao desenvolvimento infantil que defenda esta prática que se impôs do nada.

Tenhamos a coragem de exigir que se regresse ao que é sensato. Bem sabemos que "O segredo do homem é a própria infância" (João dos Santos, 1981).

Médica pediatra, neuropediatra

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