Kendrick Lamar: “Escrevo sobre mim, de forma universal”

Na primeira noite do Nos Primavera Sound um nome soou mais alto. Falámos com Kendrick Lamar, pouco antes de entrar em palco.

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Sobre o palco: "Temos de ser maiores do que a vida, ao nível dos gestos, das expressões, da colocação da voz" Paulo Pimenta
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Foi o concerto mais celebrado da noite Paulo Pimenta

É hora de jantar, num dos hotéis mais luxuosos da cidade do Porto. Na sala, vislumbram-se políticos, homens de negócio ou actrizes conhecidas da TV. Num dos cantos, um grupo de quatro homens e uma mulher, que se diferenciam pela roupa desportiva que vestem, comem e conversam tranquilamente. O mais pequeno deles é Kendrick Lamar, 26 anos, um dos rappers mais conhecidos da actualidade, ao lado de Kanye West, Pharrell Williams ou Drake.

O seu último álbum, Good Kid, m.A.A.d City, foi o álbum mais vendido de 2012 no mercado gigante norte-americano. Mas não foi apenas comercialmente que conquistou. Também artisticamente convenceu, tornando-se o rosto mais conhecido da renovação do hip-hop. Diz-nos para nos sentarmos. Pergunta se queremos comer alguma coisa. Fala connosco, ao mesmo tempo que continua a comunicar com a mesa. Discutem pormenores sobre o que irão fazer a seguir ao concerto daí a pouco no Parque da Cidade do Porto, na primeira noite do festival Nos Primavera Sound.

Depois do concerto, regressarão ao hotel, tomarão um duche e rumarão ao aeroporto, onde nessa mesma noite voarão para Denver em avião particular. Mas antes houve ainda o concerto da noite de quinta-feira, naquela que foi a estreia em Portugal. E Kendrick está confiante: “Há uns anos, por esta hora, antes de entrar em acção, já estaria nervoso, mas hoje não. Eu e os meus músicos sabemos o que fazer, mesmo em situações inesperadas, e isso dá-me confiança.”

Pouco tempo depois ver-se-ia que tinha razão para estar seguro, arrancando o concerto mais celebrado da noite, interagindo com o público com vibração, apesar de nunca perder o ar sério. “É uma grande responsabilidade interagir com um multidão num festival”, diz-nos. “Nem sempre é possível criar uma certa magia, um clima de festa e ao mesmo tempo as pessoas sentirem um pouco de quem sou, mas é mesmo isso que tento fazer. Tento que as pessoas se divirtam e que exista alguma interligação. Isso é importante. É importante as pessoas sentirem que estou próxima delas, que não sou diferente delas, que não sou um boneco que elas viram um dia na TV.”

Durante a conversa faz questão de referir várias vezes que não é uma marioneta. Tem vida própria. Tem coisas para dizer. E quer fazer sentir isso a quem o ouve ao vivo. “Em palco os temas acabam por resultar mais emocionais. Temos de fazer acreditar quem nos ouve no que estamos a fazer e a dizer. Tem de haver muita energia. Temos de ser maiores do que a vida, ao nível dos gestos, das expressões, da colocação da voz. Não podemos simplesmente estar ali a cantar as canções, sem mais. Tem de haver um envolvimento diferente.”

Kendrick cresceu numa das zonas mais problemáticas de Los Angeles, em Compton. Foi um seu professor, Dave Free, que elogiou os seus talentos como rapper. Hoje é o seu manager. Depois vieram apoios importantes como a do produtor e rapper Dr. Dre, ou de Pharrell Williams, que o apelidou de “Bob Dylan do rap”, e tornou-se uma celebridade. No universo ultracompetitivo do hip-hop já se envolveu em algumas polémicas e guerras verbais. Mas, ali, ao nosso lado, é apenas um miúdo de olhos brilhantes a falar sobre o Porto.

“Esta cidade é incrível. Tem um ambiente misterioso. Mas tem também o contraste da praia e conheci pessoas fantásticas”, diz Kendrick do Porto, onde esteve dois dias. “As viagens fazem parte do que faço, aproveito-as muitas vezes para escrever. Faço-o em qualquer lado, em hotéis ou aviões. Mas também me acontece estar em estúdio e ser aí que me inspiro, talvez porque estou rodeado de música e isso acaba por ser motivador. Em estúdio acabo por improvisar muito. Posso ter apenas uma ideia geral, um esboço, mas depois aproximo-me do microfone e as palavras acabam por surgir naturalmente.”

O álbum Good Kid, m.A.A.d City tem a vida de Kendrick inscrita nas letras das canções. “É um auto-retrato”, diz ele, “em que falo da minha relação com a cidade. Mas ao mesmo tempo é também sobre a vida de outras pessoas, porque é fácil haver um processo de identificação. Fala de lutas travadas, de abusos de drogas, da cultura dos gangs e de todas essas coisas que vivi de perto, mas ao mesmo tempo reporta-se a sentimentos que qualquer um já viveu, seja medo ou esperança, enfim, o tipo de coisas com que muitas pessoas se podem sentir ligadas intimamente. Escrevo sobre mim, de forma universal.”

Depois do lançamento desse disco, a sua existência mudou radicalmente. Adveio a fama. A pressão. A competição. Controvérsias. Naturalmente, o próximo álbum terá de reflectir uma realidade diferente, afirmamos. “Sim, não irei fugir a isso, a minha vida mudou e irei reflecti-lo”, afirma acerca de um novo disco, no qual já se encontra a trabalhar, embora não saiba quando poderá ser editado.

“Estamos a trabalhar nisso, aliás, estive a desenvolver algumas ideias em Barcelona e aqui no Porto. Mas não me sinto pressionado. Prefiro pensar em termos de desafio. Um bom desafio é interessante. Fazer o que sinto que ainda não foi feito. O desafio é sempre esse.”

No caso do Nos Primavera Sound o desafio era ver como é que um nome firmado da arena do hip-hop se apresentaria num evento conotado com as linguagens rock. Na noite de quinta-feira o desafio foi ganho, embora ele prefira dizer: “No fim de contas, independentemente dos géneros, estamos sempre a falar do mesmo: música.” E acrescenta: “Hoje o hip-hop é influente noutros universos e esses universos acabam por ser importantes para o hip-hop. Não me vejo a mim como artista de hip-hop. Sou um artista apenas.”

 

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