Eu caminhei como um zombie

A Vida Invisível é um filme de um exaltante gosto pela vida dos mortos. Vítor Gonçalves não filmava há 27 anos, quando se estreou com Uma Rapariga no Verão. O que é que lhe aconteceu? É uma pergunta despudorada, mas o filme, a sua melancolia e a sua solidão, dão uma resposta. Só temos de tacteá-la.

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27 anos depois de Uma Rapariga no Verão, Vítor Gonçalves voltou a aproximar-se de uma sala de montagem, a estar próximo de uma câmara de filmar, e a ideia de um novo filme voltou ENRIC VIVES-RUBIO

Um dia vi um homem num ministério.” E surgiu a Vítor Gonçalves uma imagem. “Vi-o a caminhar num corredor, senti a dimensão do espaço, a dimensão das paredes... Foi a ver isto que Hugo nasceu.”

Hugo, o que é? “Uma certa melancolia, uma certa solidão e um certo afastamento da vida — mas não um desistente, é um homem que ainda deseja uma promessa de vida, um homem que aspira a qualquer coisa”.

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Hugo é também um sentimento de familiaridade, reconhece o realizador. “Há pessoas que não consigo pensar e outras que consigo pensar muito bem. Senti o Hugo sempre como alguém diferente de mim, mas havia nele um núcleo de familiaridade. O sentimento de morto-vivo é a ponte. A familiaridade comigo é essa” — o elo que se estabelece entre pes­soas que não se sen­tem vivas, como se a vida não estivesse ao seu alcance. Daí a “exaltação” pela complexidade de que poderia ser feito alguém que estava a fazer surgir no cineasta um desejo de proximidade — quando a ideia e a proximidade a essa ideia tornavam a personagem uma figura obscura, que se fechava, imprescrutável, Vítor Gonçalves regressava, com sede de transfusão, àquela imagem original de um homem no corredor.

Hugo é já um salto no tempo em relação a essa imagem inicial. É a personagem principal, interpretada por Filipe Duarte, de A Vida Invisível, filme rodado num ministério real, em confronto com um corredor real. “A palavra em inglês seria dismayal: uma espécie de choque de desilusão e de desencanto”, começa por sublinhar Vítor Gonçalves. “Aquele corredor real nada tinha a ver com a imagem de que falei. Mas tinha de filmar nele. Através do enquadramento, da luz e da mise-en-scène, tinha de encontrar uma outra imagem que já não é a primeira, mas que ainda é mais misteriosa do que a primeira. Filmar para mim é viver enquanto se filma um plano: o deslumbramento de um mundo que eu não tinha ainda visto, de um corredor que eu ainda não tinha visto — mas que é capaz de estar ligado ao primeiro pensamento, à primeira ideia.”

Da vida dos mortos

 A Vida Invisível é, então, um filme de um exaltante gosto pela vida dos mortos. O espectador pode experimentá-lo ao detectar presenças, como se ficasse investido de um toque mediúnico que o fizesse sentir, nos planos, cenas invisíveis por baixo das que foram filmadas, como se tacteasse um filme secreto que se esconde debaixo de escadas ou espreita num corredor. São essas as zonas de sombra que constituem o habitat de Hugo, personagem que gosta mais da companhia dos mortos do que dos vivos — é o que lhe diz uma rapariga, Adriana/Maria João Pinho, vida que Hugo também deixou escapar. “Ao longo de todo o processo do filme, essa foi a ideia à qual sempre voltei: um morto-vivo, alguém que não se sente realmente vivo. E que tem uma grande dificuldade em pensar o que está a acontecer à sua vida. Ele não se sente vivo, mas não é capaz de pensar o que lhe está a acontecer — por isso as palavras de Adriana são necessárias para ele pensar que não tem acesso à experiência de estar vivo”, explica o realizador. “Houve sempre essa ideia abstracta, mas a questão era como fazer um filme que não fosse literário. Que tivesse, através da forma e da matéria, uma presença que nos fizesse viver essa ideia.”

É entre os mortos que o filme gosta de estar, absorvendo a respiração do funcionário público Hugo que é a respiração dos corredores e das salas dos min­istérios no Ter­reiro do Paço, em Lis­boa, onde ele tra­balha — é aí que A Vida Invisível fixa o espectador, viciando-o nas sombras (a cada regresso ao filme aguçam-se os sentidos, a morbidez, o prazer.) É ali que Hugo sabe que o seu supe­rior, António (João Perry), está a mor­rer.

Figura tute­lar, autori­dade paterna, aquilo que os une e como os une está resumido naquela sequên­cia em que António vai descendo escadas em cara­col e deixando cair papéis, como se fosse o seu legado, nessa descida atraindo Hugo para a escuridão, como se o quisesse fixar aí, prendendo-o à sua memória. É das coisas mais misteriosas, intensas de A Vida Invisível a forma como cria presenças nos décores, que de coisas mortas passam a coisas habitadas.

Vítor Gonçalves não filmava há 27 anos, quando se estreou com Uma Rapariga no Verão, momento também das promessas iniciais de Pedro Costa (O Sangue) ou de Teresa Villaverde (A Idade Maior), filmes em que a infância e a adolescência se confrontavam com o património dos pais, submetendo-se ou libertando-se do fardo, em qualquer dos casos não escapando às figuras tutelares — ao desejo delas. Quase três décadas depois, período em que esteve afastado da realização, Vítor Gonçalves filma como se tivesse deixado o plateau apenas na véspera. Essa sensação invadiu-o e ele só consegue explicá-la, como aliás faz em relação ao seu retiro, com recurso ao mistério ou a um desígnio fantástico — certamente A Vida Invisível e a personagem de Hugo falam disso. E é como se, 27 anos depois, Uma Rapariga no Verão (filme que Gonçalves realizou aos 35 anos e que se foi cobrindo de culto a cada exibição na Cinemateca e que só agora se estreia no circuito comercial — ver texto nestas páginas) continuasse a falar-nos (fechado no seu mistério, coisa que não é totalmente explicável por ter permanecido invisível) e mantivesse diálogo com A Vida Invisível, filme que Gonçalves realiza aos 62 anos. Tam­bém ali havia alguém, uma rapariga, a estrebuchar perante o património de quimeras dos “pais”, qualquer coisa de monstruoso que ameaçava sufocá-la. E também ali havia um pedaço de fantástico, e de loucura e de febre, numa personagem de João Perry, alguém engolido pelas fan­tasias colo­ni­ais do pai, não lhe restando se não a lou­cura — e uma pantera enjaulada, porque está em Uma Rapariga no Verão um pedaço de Jacques Tourneur e, já agora, está também uma delírio pós-colonial muitos anos antes do Tabu de Miguel Gomes.

“Estive anos sem ver Uma Rapariga no Verão. Mas não me afastei emocionalmente desse filme. Quando o voltei a ver, senti que continuava a ter acesso ao seu universo emocional e quando rodava A Vida Invisível senti que havia uma espécie de sombra de Uma Rapariga no Verão”, diz o cineasta.

Para viver essa alegria

O que é que lhe aconteceu em quase três décadas? É uma pergunta tão despudorada, e tão condenada a ficar sem respostas, como aquela que quiser detectar o que se passa na cabeça da personagem de Hugo durante o seu percurso das sombras para a luz — o que sabemos é que no final Hugo, visivelmente, se move.

“Comecei por estudar Engenharia Civil no Instituto Superior Técnico”, começa por contar Vítor Gonçalves, como se estivesse a tactear no escuro a sua presença. “No final do curso fiz uma ruptura — fui para o cinema.” Corria o ano de 1975. “A engenharia era um território de razão, de previsibilidade, e a ruptura correspondeu a um desejo de viver uma criatividade ligada à emoção. Que fosse capaz de me colocar em contacto com outras pessoas de outra maneira.” De viver o cinema em conjunto. Em 1983 é co-fundador da Trópico Filmes, empresa que produz Uma Rapariga no Verão (1986), O Sangue, de Pedro Costa (1987) e A Nuvem, de Ana Luísa Guimarães (1992). O sonho viria a desvanecer-se no contacto com a realidade, tal como uma juvenil euforia que no final dos anos 80 tomou conta de muitos espectadores em relação ao “seu” cinema.

“A dimensão solitária de cada um de nós entrou sempre em tensão” com o projecto de grupo. “Muito depressa a solidão de cada um tornou evidente que tínhamos de nos separar”. Isso não explica, assegura, o que se iria passar a seguir. “Tive um recuo interior em relação à criatividade. E em relação às pessoas — isolamento e afastamento dos outros. Mas tive sempre a sensação muito forte de me manter ligado ao cinema, que nunca deixou de ser o centro da minha vida.” Nomeadamente integrando o corpo docente da Escola Superior de Teatro e Cinema, onde lecciona na área de realização e onde foi pensando o cinema em conjunto com os alunos. Mas a verdade é que desapareceu. E que deixou como vestígio um filme tão frágil e simultaneamente tão gratínico.

Porque é que regressou? “Não consigo explicar racionalmente. É como se fosse um movimento oposto. Voltei a aproximar-me da sala de montagem e a estar próximo de uma câmara de filmar. E, com isso, a ideia de voltar a fazer um filme. Aquela sensação de ter filmado na véspera... foi uma sensação tão forte, foi como se não tivesse vivido aqueles 30 anos quando voltei ao plateau para filmar o primeiro plano de A Vida Invisível. Como se não tivesse a percepção do tempo, de há quanto tempo não reenquadrava um plano. Sinto uma alegria profunda quando encontro o plano e o plano me transforma emocionalmente. Como se através do plano houvesse uma metamorfose da evidência daquele real, que me traz uma realidade que eu ainda não tinha visto. O cinema, filmar, é importante para mim, para viver essa alegria.” Rejubilemos: Vítor Gonçalves moveu-se no plano.

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