Tiananmen? “Se não me tivesse falado disso, nem me lembrava”

O regime chinês apagou a revolta estudantil e o massacre da memória colectiva. Mas, em 25 anos, foi tirando as suas conclusões: fez o que devia no momento que devia.

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O Homem do Tanque, a imagem que simboliza a resistência e o massacre na praça de Pequim Reuters

Uma vez por dia, um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China fala com os jornalistas estrangeiros em Pequim. Nesta terça-feira, aconteceu uma coisa inesperada. Hong Lei aceitou as perguntas sobre Tiananmen. Não lhes deu resposta, mas falou bastante sobre o tema. “Há muito que o Governo chinês chegou a uma conclusão sobre os distúrbios dos anos de 1980”, disse.

Foi na noite de 3 para 4 de Junho de 1989 que os soldados e os tanques do exército chinês avançaram em direcção à Praça Tiananmen de Pequim, onde dois meses antes nascera um movimento estudantil e civil que pedia liberdades e mudanças políticas. O movimento transformou-se num protesto nacional, com manifestações pró-democracia em pelo menos 160 grandes cidades. Na noite de 3 de Junho, a direcção política — liderada por Deng Xiaoping — deu a ordem de fogo. No dia 4, o protesto foi esmagado pela força dos tanques e pelas balas que deixaram centenas ou milhares de mortos. O número oficial de vítimas nunca foi revelado.

Num primeiro momento, o que aconteceu em Tiananmen foi classificado como acto contra-revolucionário. Vinte e cinco anos depois, foram “distúrbios” que, segundo as palavras do porta-voz Hong, o Governo teve que travar em nome do progresso e do bem-estar do povo.

”Podemos dizer que o caminho do socialismo com características chinesas que seguimos está em consonância com os interesses do povo chinês”, disse Hong. Prosseguiu: “O mundo prestou muita atenção aos grandes avanços sociais e económicos da China nestas mais de três décadas de reformas e abertura. A construção da democracia e a aplicação da lei continuam a ser aperfeiçoadas”.

O Governo fez o que devia, disse Hong. Durante e depois de Tiananmen. E as palavras-chave na explicação oficial — socialismo de modelo chinês e interesse do povo — aparecem a confirmar as análises que, em 25 anos, os historiadores, os analistas e os jornalistas foram produzindo.

Quando os soldados abriram fogo, disse ao South China Morning Post o sinólogo Perry Link, “deu-se uma viragem na China”. Se, até ao momento em que Deng mandou disparar as armas se acreditava, dentro e fora do regime, que se poderia assistir a uma mudança no tecido político, essa possibilidade fechou-se para sempre. “O grande objectivo da decisão — disse Link — foi preservar a liderança do partido”.

“A opção pela força letal por parte do Governo chinês não foi acidental. Foi uma escolha, foi o resultado de um cálculo e então como agora, e do ponto de vista do regime, foi a opção correcta. Sabemos pelos Documentos de Tiananmen [compilação de documentos secretos sobre os acontecimentos de 1989] que as pessoas no topo da hierarquia do Partido Comunista da China sentiam que estavam a enfrentar uma ameaça à sua existência na Primavera de 1989. Os grandes protestos nas ruas, não só em Pequim mas em praticamente todas as províncias da China liderada pelo vice-presidente Wang Zhen, pelo primeiro-ministro Li Peng, e por outros do círculo do poder, levaram-nos a concluir que a sobrevivência do seu regime estava em causa”, escreveu Perry Link no prefácio ao livro Tiananmen Exiles: Voices of the Struggle for Democracy in China. O prefácio foi publicado na New York Review of Books com o título China After Tiananmen: Money, Yes; Ideas, No.

O massacre, explica o professor de Ciência Política da universidade de Columbia (Nova Iorque), permitiu ao regime sobreviver mas não só. “Encurralou o regime no seu modelo autoritário de que não consegue sair” — nem um líder depois de Deng, sublinha o académico, deu qualquer sinal de pretender fazer qualquer esboço de reforma política. Xi Jinping, o actual Presidente, o homem que se perfila como o segundo grande reformador da China depois de Deng, tem demonstrado que quer fechar cada vez mais o sistema de partido único autoritário e centralizado. Está a fazê-lo afastando líderes com outra linha de pensamento — alguns caídos na guerra contra a corrupção —, tornando mais rígido o controlo sobre os media, prendendo dissidentes, como os que foram detidos nas vésperas deste 25.º aniversário (académicos, intelectuais, artistas). O porta-voz Hong também comentou esta vaga de prisões no país onde é proibido assinalar Tiananmen: “Na China só há infractores da lei, não há cá isso de dissidentes”.

Depois do massacre, os chineses aprenderam que há uma linha vermelha que não podem pisar. Aprenderam os civis com o banho de sangue. Aprenderam os políticos como Zhao Ziyang (o líder partidário que tinha um plano de acção reformista), detido e mantido em prisão domiciliária durante 16 anos. Aprenderam os militares como o general Xu Qinxian, comandante do poderoso 38.º batalhão do Exército que quis desobedecer à ordem de disparar sobre civis. “Prefiro ser decapitado do que ser um criminoso aos olhos da História”, disse. Xu foi preso. A sua história — e a da tentativa de rebelião de um grupo de generais, que foi travada pela liderança política — está no excelente trabalho Voices of Tiananmen no site do South China Morning Post.

Durante 25 anos, o regime silenciou Tiananmen. Primeiro, controlando a narrativa. Depois, fazendo as pessoas esquecerem, como explica Louisa Lim, que escreveu The People’s Republic of Amnesia. “Se não me tivesse falado disso nem me lembrava”, disse ao Financial Times um estudante da universidade de Pequim, onde nasceu o movimento estudantil de 1989.

No processo de apagamento da memória, aconteceu outra coisa a que o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros aludiu na sua explicação: o interesse do povo. Em 1985, Deng disse: “Deixe-se que primeiro só uma parte da população seja rica.” Uma parte dos chineses já é rica, a outra parte sonha ser rica.

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