Manuel Palito e “O Corvo”

O que se passou em São João da Pesqueira é similar a “O Corvo”: o medo grassa por aquelas terras, medo aos homens, medo ao álcool que estes ingerem em doses abissais, medo de ser-se alvo de represálias se se falar.

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Thomas Lieser/Flickr

Ao fim de uma semana nos arredores de São João da Pesqueira, já não sei se antes ou depois de uma prima da ex-mulher de Manuel Palito me dizer em lágrimas que “Os homens desta terra pararam no século XVIII”, lembrei-me de “Le Corbeau”, de Henri-Georges Clouzot, filme francês de 1943. Um dos mais verosímeis retratos de uma sociedade fechada, “O Corvo” passa-se numa pequena terriola francesa, assolada por uma série de cartas assinadas por O Corvo, que são enviadas para a população, delatando pecadilhos morais. A primeira acusa um médico de ter um caso com a esposa de um psiquiatra local e de fazer abortos ilegais. Ao longo do filme várias pessoas tornam-se suspeitas de serem os perpetradores daquelas cartas que conduzem a suicídios e a uma espécie de motim social.

Em última instância, “O Corvo” é um filme sobre o medo — o medo de ver um segredo revelado, de que um pecado não seja perdoado pela população e de que a sua revelação destrua para sempre a ordem das coisas. O seu aspecto fundamental é esse: a verdade traz a desordem e o caos a uma sociedade que viva no obscurantismo, sem mobilidade social ou moral. A narrativa de “O Corvo” assenta na premissa oposta ao sucedido em Valongo dos Azeites: neste caso sabemos quem matou, que existia violência doméstica embora não quando começou e, até certo ponto, porque é que matou: uma espécie de obsessão com a ex-mulher e uma proto-paranóia que o levavam a crer que eram as familiares dela (e não os seus actos) que a afastaram. Como foi isto possível, podemos perguntar, dado que tanto em Trevões como em Valongo dos Azeites toda a gente via Palito passar meia-dúzia de vezes por dia pela casa da ex-mulher e conhecia as ameaças dele (e, em alguns casos, até gozavam com o facto de ele falar em matar mas nunca o fazer)?

Resposta dada por dezenas de habitantes: “Isso era lá com eles”. Essa noção do mundo, de que o que acontece dentro de um lar fica nesse lar, não é exclusiva de Valongo dos Azeites. Há 30 mulheres assassinadas por ano pelos seus maridos — dois dos quais atentam não apenas contra a esposa mas toda a família. Quando perguntava aos locais se sabiam que a violência doméstica era crime público, olhavam-me surpresos, encolhiam os ombros e viravam costas murmurando “Isso agora”.

Como Palito sobreviveu 34 dias no mato, onde arranjou a arma, quem o avisou de que aquelas mulheres estavam reunidas, tudo isto vai sendo dito, em surdina, pela população, em versões diferentes.

A informação que vai escapando (e que os jornais deviam filtrar, visto terem constantemente publicado erros) não só é contraditória, como é usada de formas diferentes pela população — por vezes contar é uma forma de catarse, outras serve de vingança: por baixo deste crime existe um passado de zangas familiares, rivalidades locais, um caso de pedofilia que terminou num assassinato, negociatas e rancor mútuo, escondido pelo silêncio que a sobrevivência impõe. Nesse sentido, o que se passou em São João da Pesqueira é similar a “O Corvo”: o medo grassa por aquelas terras, medo aos homens, medo ao álcool que estes ingerem em doses abissais, medo de ser-se alvo de represálias se se falar.

O mais fundo de todos é o medo de que algo se altere na ordem das coisas, por mais que o agora e o antes estejam longe de ser o melhor dos mundos possíveis, pela simples razão de não se conseguir imaginar uma saída ou um futuro fora das premissas em que se vive. Não vale a pena ter ilusões: este medo, que ali é tão claro, existe em todo o país e faz de nós o povo violentado que somos.

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