O hospital da maior roça de São Tomé tem mais uma ferida aberta

É a mais importante roça do país, jóia de várias coroas e da República portuguesas até 1975 e hoje casa de cerca de mil pessoas. Há sema-nas, toda uma ala do hospital da Agostinho Neto ruiu.

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O macaco DJ pula à janela, “Ronaldo” marca o seu quarto golo na ala da Medicina Mulheres e as crianças enxameiam a entrada do edifício cimeiro da roça Agostinho Neto, a maior e mais importante de São Tomé e Príncipe. Isto é à direita. Quando o olhar se volta para o lado esquerdo do imponente edifício, toda a ala que era a Medicina Homens já não está lá. Há semanas, colapsou mais um pedaço, importante, do património arquitectónico são-tomense e, inevitavelmente, do passado colonial português. “As lágrimas vêm aos olhos”, diz o arquitecto Duarte Pape, um dos autores da inventariação tornada livro destas estruturas de exploração agrícola no país.

Editado no ano passado pela Tinta da China, As Roças de São Tomé e Príncipe gerou, admite um dos dois arquitectos portugueses que assina, com Rodrigo Rebelo de Andrade, esse levantamento das 150 roças existentes no pequeno país africano, “uma sensibilização”. Fizeram-se notícias, representantes do Estado são-tomense foram à apresentação da publicação. “Agitou, mas não há consequência política nenhuma”, diz à Revista 2 com o sol a pôr-se na ilha de São Tomé enquanto as crianças brincam à nossa volta, pequenas vidas frenéticas sobre os destroços. 

O alerta dado sobre o estado de degradação de grande parte destas plantações embateu nas prioridades de uma nação em que o saneamento básico não é para todos, em que uma das suas duas ilhas só tem electricidade por gerador e que se luta contra o muito desemprego. E também, admitem arquitectos, antropólogos e são-tomenses com quem durante uma semana visitámos roças nas duas ilhas, encontrou um muro feito da memória da escravatura e de alguma inércia.

A mais importante roça do país, jóia de várias coroas e da República portuguesas até 1975, será hoje casa de cerca de mil pessoas, a maioria concentrada nas antigas senzalas. Crianças afectuosas, tão ansiosas por distracção quanto os muitos adultos que ou trabalham a terra ou vêem o tempo passar de olhar perdido na chuva quente ou no calor húmido, correm escada acima, escada abaixo do hospital construído nos anos 1920. Mostram-nos a lavandaria — de pé —, a maternidade — uma carcaça —, a horta, os patos, os cães esquálidos. Ao lado do pedaço de hospital ainda erguido onde vive mais de uma dezena de pessoas, vislumbra-se a capela branca de vidros coloridos. 

Crianças brincam na escadaria principal da Agostinho Neto Daniel Rocha
Escombros no lado esquerdo do imponente edifício, a ala que era a Medicina Homens do Hospital da Agositnho Neto e que ruiu há umas semanas Daniel Rocha
Os residentes contam que não houve feridos. A ala que ruiu era uma grande enfermaria e servia para as brincadeiras das crianças Daniel Rocha
O macaco DJ empoleira-se nos muros, nos parapeitos Daniel Rocha
A Agostinho Neto serve de casa para cerca de mil pessoas, a maioria concentrada nas antigas senzalas Daniel Rocha
Zizinha tem o 12.º ano completo, uma filha, sem trabalho. Para ela, só o turismo pode salvar a Agostinho Neto Daniel Rocha
A ala que ruiu, do lado esquerdo do edifício. A maioria das plantações em São Tomé está decadente Daniel Rocha
Crianças brincam na escadaria. A escola fica em Guadalupe, uns poucos quilómetros a pé de estradas e mato Daniel Rocha
O Hospital da Agostinho Neto foi construído em 1920. A roça de estilo déco foi inaugurada em 1865 Daniel Rocha
“O verdadeiro património histórico e arquitectónico de São Tomé e Príncipe são as roças, os hospitais”, diz o arquitecto Francisco Plácido Daniel Rocha
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Crianças brincam na escadaria principal da Agostinho Neto Daniel Rocha

Uma pequena grande cidade, um ponto alto no terreno repleto de ruído, de verde e de vida, a antiga roça Rio do Ouro e ex-sede da então mais importante exploração agrícola do país, a Sociedade Agrícola Valle Flôr, é oficialmente designada como Agostinho Neto desde 1980. E é uma súmula de memórias de escravos e posterior abandono estatal. “O verdadeiro património histórico e arquitectónico de São Tomé e Príncipe são as roças, os hospitais”, diz à Revista 2 o arquitecto Francisco Plácido, que está a trabalhar na ilha do Príncipe e que fez grande parte da sua carreira em países em vias de desenvolvimento. “Há um relacionamento de abandono sobre esse edificado”, confirma-nos em conversa no Príncipe.

“Não é só património de São Tomé e Príncipe, é um património que junta [por todas as pessoas que aqui trabalharam ao longo dos anos] influência desde a brasileira à cabo-verdiana, angolana, guineense, moçambicana, todos os que vieram para cá, como é património português”, resume Duarte Pape no terreno fronteiro ao hospital, cuja tipologia faz lembrar a Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa. Aqui vivem os descendentes dos escravos e emigrantes que entre o século XIX e a primeira metade do século XX trabalharam na pulsante produção de cacau, uma das 122 roças que Pape e Rebelo de Andrade inventariaram — a maioria, 103, fica em São Tomé, as restantes na ilha do Príncipe e um punhado delas certamente nos planos de viagem de quem visita o pequeno arquipélago africano. 

Subimos para ver a ruína semi-habitada mais de perto, e essa localização deve-se a questões técnicas mas também a “afirmação”, aponta Duarte Pape — “Uma roça que tivesse um hospital era importante e não é por acaso que este hospital nasce nesta roça. É cenário.” 

Como a ala ruída era uma grande enfermaria, um espaço aberto e simétrico àquele onde os rapazes jogam à bola enquanto visitamos a Agostinho Neto, ninguém morava lá. Naquela noite, quando o telhado e as paredes colapsaram, houve gritos mas não houve feridos, contam os residentes. Pape mostra as imagens, no seu livro, do hospital ainda inteiro.

As crianças penduram-se-nos para ver melhor, uma delas uma minúscula mancha vermelha e verde feita de uma camisola alusiva à selecção portuguesa vice-campeã europeia de 2004. “É o que caiu”, identificam os pequenos moradores sobre a perda desta parte de um exemplar de estilo déco, sobre parte da sua casa agora semidestruída. “Nós, portugueses, também temos uma responsabilidade sobre isto”, sublinha o arquitecto, que volta a constatar o “risco de colapso de todo o complexo hospitalar” da roça fundada em 1865. É o tal alerta, não só sobre a Agostinho Neto, mas sobre muitas das roças do país, também em risco pela voracidade do clima — a humidade é uma constante, a chuva também, o solo é fértil e tudo se conjuga para que vegetação e degradação se juntem para ir devorando este edificado. 

O futuro parece inevitável, tal como o era há seis meses quando foi publicado As Roças de São Tomé e Príncipe. “Não há muito a fazer contra. Não podemos olhar para uma antiga estrutura colonial que foi sendo apropriada de maneira informal e achar que pode ser considerada património. Teria de passar por uma revolução, mas nunca se poderia voltar ao que era” em termos arquitectónicos e de organização, diz Duarte Pape. “Reduzindo a densidade populacional”, exemplifica, “mantinha-se esta vida e esta intensidade?”. As roças, e em particular as senzalas, são onde está muita da vida na ilha do Príncipe, mas também em São Tomé. Isso vê-se na cidadezinha descarnada da Agostinho Neto ou na lúgubre mas acolhedora São Joaquim, cuja vista esmagadora sobre o mar e o relevo do Príncipe é quase ofuscada pela carga moral de paredes negras e janelas ausentes da autoritária casa do feitor.

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Einstein no Príncipe

Carlos Marx Horta é um solicitado guia são-tomense, filho de um capataz de uma roça da vizinha ilha do Príncipe. Conhece as plantas, as pessoas, as memórias do seu país. Na Agostinho Neto, as brincadeiras continuam à nossa volta. A hora da saída da escola que estas crianças frequentam em Guadalupe, uns poucos quilómetros a pé de estradas e mato, já passou há muito. “Para vocês [portugueses], as roças têm uma história, para nós tem outra.” Há mesmo quem diga “que vá tudo abaixo”, admite o guia. 

Duarte Pape começou o seu contacto mais intenso com São Tomé há cerca de sete anos. Trabalha agora em projectos como a recuperação da casa principal de uma das mais importantes roças da ilha do Príncipe, a quase pitoresca Sundy, uma mistura de Portugal dos Pequenitos com o mais indelével lado de um império colonial, a escravatura marcada nas paredes das senzalas. Fá-lo como consultor para a empresa HBD do milionário sul-africano Mark Shuttleworth, que está a injectar milhões na transformação do Príncipe num destino sustentável. A empresa concessionou a praia homónima e acordou com o Estado, proprietário de muitas das roças são-tomenses, tratar da casa principal onde em 1919 foi comprovada a Teoria da Relatividade de Einstein no Príncipe e que desde a independência, em 1975, era o local de pernoita dos representantes do Governo quando iam à ilha menos urbanizada e mais verde do arquipélago. 

Este é um dos caminhos tentados para a recuperação das roças, a par de, também com a HBD, criar uma espécie de laboratório de pedreiros e pequena produção agrícola de produtos gourmet e especialidades locais na Roça Paciência ou da exploração turística, por outro empresário hoteleiro, na recém-aberta roça Belo Monte, ambas também no Príncipe. 
O dilema destas estruturas coloniais está enleado num “processo gradual de reapropriações de roças”, primeiro pelo Estado, após a independência, depois entregue a comunidades ou empresários locais ou estrangeiros, e na “desvinculação do passado que ainda é muito presente”, diz Francisco Plácido, também a trabalhar com a HBD no Príncipe. Acredita que para estas estruturas ganharem nova vida têm de ser enquadradas em “diferentes valências — turísticas, agro-industriais”, exemplifica. “É um processo de consciencialização que vai demorar, como o processo de abandono dos centros históricos em Portugal — quem perde a sua identidade física, perde a sua identidade como civilização.”

Duarte Pape acredita que a roça são-tomense pode ressuscitar como “estrutura produtiva, cultural ou agrícola”, mas não apenas com base na vertente turística — “Se é só turismo, vai ser sempre uma cadeira muito desequilibrada.” O cacau e os chocolates produzidos na roça do Terreiro Velho do italiano Claudio Corallo ou a roça São João de Angolares, a dos tachos celebrizados no programa de TV do seu proprietário João Carlos Silva, são exemplos de possibilidades para um problema “complexo”, “transversal”, que invoca cargas morais, reapropriações, história ou empowerment. Pape começou já a fazer o levantamento da ala que ainda está em pé do hospital da Agostinho Neto, sem “qualquer apoio local” e tentando cativar arquitectos são-tomenses para a tarefa, para que haja registos se for preciso recuperar o que ruiu há semanas. No primeiro andar mora gente, no piso térreo as crianças brincam e o macaco, amarrado, pendura-se em restos de portas e janelas. 

Zizinha, sentada sobre o corrimão do hospital doente, exaspera-se e pede, gesticulando energicamente, que o turismo venha tomar conta da Agostinho Neto. É a via que lhe parece mais fácil, por tudo o que ouve dizer sobre outras roças. Com o 12.º ano completo e uma só filha num país de elevada natalidade (“não sei como dava de comer a mais crianças”), não tem trabalho. “Só consigo cultivar” nos terrenos em torno do hospital, onde vive e dentro do qual chove. Não há fome, mas também não há futuro. 

“O Governo abandonou”, diz sobre o edifício rosa nas suas costas, mas “não devia danificar património do Estado. As pessoas tiravam [e tiram] vigas, diagonal” e materiais para as suas próprias casas, “mas o Governo não quis saber, é muito malvado”. O estado a que chegou esta parcela do hospital da Agostinho Neto deve-se muito à ausência de conservação e ao uso que os habitantes e vizinhos dela faziam. A retirada de materiais foi enfraquecendo a estrutura e, naquele início de noite, a ala veio abaixo. “Um hospital grande assim abandonado é muito mau. E um hospital é uma necessidade”, reflecte Zizinha enquanto o sol se põe. Sempre com a tensão na voz e nos gestos, remata, olhando a Agostinho Neto de cima para baixo: “A nossa beleza é aqui. Quando for abaixo, fica feio.”

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A roça Agostinho Neto em 2003

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