Podemos ter presente?

Foto
No seu neocolonialismo, a lusofonia é uma forma arcaica de relação com o mundo Miguel Manso

São tempos de mau revivalismo, estes em que assistimos à identificação de Portugal com o mito glorioso da ex-potência imperial — exactamente aquilo que temos de mais pré-moderno

Foi Eduardo Lourenço a afirmá-lo, em recente entrevista ao PÚBLICO (18 de Maio): “Em todos os momentos importantes, as nossas referências continuam a ser as mesmas, as do Império perdido.” É, pois, o problema da identidade e da representação que mais uma vez é questionado, assunto sobre o qual o ensaísta vem há muitos anos trabalhando. 

Há, porém, um dado novo referente a um acontecimento relativamente recente. Ao afirmar logo a seguir, na mesma frase, que o que levámos à Europália, em 1991, foi “a gesta dos descobrimentos” — “Não temos mais nada para levar. É a nossa prata da casa” —, Lourenço profetiza uma ausência de um futuro que vá além do remoer de uma mitologia já funesta por tanto teimar em não querer abandonar um passado mítico, porque construído com base em narrativas provenientes de uma só face: a da glória passada.

Em detalhe, este problema — sim, porque é um problema a incapacidade que uma comunidade revela para lidar com o presente a partir de culturemas do presente — que consiste em evocar um passado construído como auto-representação do país e da comunidade resulta no reforçar de uma identidade passadista e anacrónica a partir de discursos em loop e de uma certa produção cultural material e imaterial. 

Os recentes discursos e encenações do Governo — recorrendo às metáforas da Restauração, do dobrar do Cabo das Tormentas e a outras expressões revivalistas — são demonstrativos da vontade de exilar os portugueses num tempo fora da História, porque a História revista da Europa já incorporou as novas narrativas que integram o imperialismo como constituindo também uma perda para a humanidade. Além de kitsch, este tipo de discurso que temos ouvido dos governantes é parasitário do presente, sendo um revivalismo e também uma tentativa de vingança contra as narrativas científicas mais inovadoras que as ciências humanas e sociais produziram em Portugal e na Europa nas últimas décadas.

Por isto, e pese embora a auto-representação feita nestes termos não ser homogénea nem porventura maioritária, ela acontece porque se permitiu criar nos últimos anos um cadinho onde este tipo de construção forjada de uma identidade homogénea se consolidou, seja pela afirmação de certas actividades e de certos discursos, seja pela ausência de outros mais urgentes e de novas identidades. No primeiro grupo cabe a insistência num sistema educativo mais baseado na quantificação — das disciplinas, das metodologias, das avaliações — do que na prática de uma democracia interna na aprendizagem e no debate crítico sobre a construção de narrativas, venham elas da Literatura ou da História ou da Arte.

A lusofonia é, por seu lado, na sua componente neocolonial e passadista, uma das formas mais arcaicas de relacionamento com o mundo na sua diversidade, insistindo na glória da matriz colonial e contribuindo para o que de mais improdutivo pode haver nos imaginários contemporâneos, nomeadamente os que abordam o trauma da separação pós-colonial. 

Como género musical e poético, o fado, se conciliar a música com a beleza dos versos, da voz e da interpretação, pode constituir uma arte poética. É um facto o seu ressurgimento, iniciado no final da década de 80 graças a novos letristas como Manuela de Freitas, Maria do Rosário Machado, Vasco Graça Moura, João Monge e a intérpretes como Mísia, Camané, Paulo Bragança, Carminho, Aldina Duarte. Chegou, assim, à produção artística contemporânea algo de novo e urgente. Mas, por outro lado, o repertório revivalista e marialva, e da exaltação da pobreza como um valor identitário, é parceiro imediato das narrativas míticas da lusofonia presentes nos discursos dos governos sobre a restauração. 

O problema da representação e da identidade não pode, contudo, ser visto apenas na multiplicidade de representações e de identidades que estão no mesmo país e nas suas diásporas. Essa identidade reclamada confronta-se também, ou faz-se reconhecer, nas representações construídas “do lado de fora”, no exterior do país — nos festivais, nas bienais, nas salas de concertos no estrangeiro —, que devem ser designadas como “identificações”. Também elas são mais ou menos minoritárias, mais ou menos conforme as auto-representações. 

Neste momento, o que vemos na Europa, num ambiente maioritariamente populista, é a “compra” de uma identificação assente no mito imperialista de Portugal, uma identificação exterior com o mesmo mito das glórias passadas a que se seguiu a desgraça. E aqui se diverge do que afirma Eduardo Lourenço. A prata da casa — aquela com que os outros nos identificam — surge, por responsabilidade dos de dentro, dos que cá vivem, e também graças ao populismo dos que vivem fora, como uma espécie de baixela pobre e fraudulenta, revestida apenas a banho de prata. Para a maioria dos estrangeiros, que não diferenciarão as letras novas das velhas, o fado satisfaz o preconceito de que Portugal nunca deixou de ser país de gente triste e submissa. Assim como os teatros que reproduzem as glórias das tão ultrapassadas “revistas à portuguesa” do Portugal antigo, ou o artesanato nostálgico do ser português que tanta “procura” agora tem num mundo populista. E muitos se congratulam assim com o reconhecimento exterior do que há de mais pré-moderno no país, a começar pelos que produzem os artefactos passadistas com que querem identificar o país, todo o país, seja porque é financeiramente rentável, porque alimenta o narcisismo ou porque faz parte de uma expressão ideológica lusófona.

A Europália no início da década de 90, foi a mais profissional das organizações culturais de vocação internacional por ter feito, a par da apresentação dos objectos da glória imperial, a promoção de trabalho desconhecido do grande público no campo da investigação científica, bem como da criação contemporânea tanto quanto então era possível. O resultado foi um retorno — em forma de dádiva — ao país de novas expressões de identidade, mais modernas e consentâneas com o mundo em devir. Mas nos últimos anos regressamos, em parte, a este culto serôdio do passado; por responsabilidade dos governos e de muitas organizações culturais. Num caso e no outro, não interessa a inquietude do presente, a estranheza, o anti-imperialismo nas formas mais ou menos radicais sob as quais um país contemporâneo possa expressar-se. O estritamente decorativo, as novas formas de kitsch e a protecção de modelos de entretenimento maioritariamente importados não representam uma ameaça, uma desconstrução, uma alternativa de política para as artes. 

Se estas são razões ideológicas para o que acontece, há outras: a impreparação para gerir a techné da nova tecnologia (não as máquinas propriamente ditas, mas os efeitos que o seu uso sofisticado pode produzir no pensamento social); o poder absurdo de uma certa elite que ocupou nos últimos 40 anos os lugares do poder e assim dominou e domina o gosto e as instituições; a falta de dinheiro (já não beneficiamos do oiro do Brasil há muito, muito tempo, como aliás a França também já não pode construir mais castelos no Loire, nem a Inglaterra mais palácios reais depois da descolonização). 

A Europália, com todas as suas virtudes, deixou em suspenso a relação com o colonialismo. Só a meio dessa década de 90 a literatura, o cinema e a dança trabalharam este problema maior — o que foi e o que resta do império? —, e começámos a chegar à conclusão de que parte desta ausência de uma cultura contemporânea é uma perda. Essa perda está directamente ligada ao recuo do país para uma domesticidade sem valor nem glória. E não é culpa do destino mas fraqueza ou do medo de quem pode.

Sugerir correcção
Comentar