Efeitos secundários

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Toshiki Okada regressa ao Alkantara Festival com uma lente de aumentar posta em cima da sociedade japonesa. Super Premium Soft Double Vanilla Rich é uma parábola perigosa

Há uma atmosfera estranha, uma espécie de permanente anti-clímax que alimenta os palcos imaginados por Toshiki Okada. Os corpos existem como se não pudessem sair de uma dormência que o encenador japonês de 39 anos, agudo e conciso no modo como fala do seu trabalho, assume rapidamente: “Sim, é o meu comentário sobre a sociedade japonesa contemporânea.” Super Premium Soft Double Vanilla Rich, a peça que o faz regressar a Lisboa e ao Alkantara Festival (Maria Matos, próximas quinta e sexta-feira, respectivamente 5 e 6 de Junho), é o novo opus de um rapaz que olha para a sociedade japonesa com uma lente de aumentar e depois queima os pequenos pontos que são as pessoas — formigas dedicadas e serenas seguindo em frente nas suas vidas.

Quando Okada chegou à Europa, no Verão de 2007, trazido pelo festival Kunsten, de Bruxelas, a “infantilização dos jovens adultos em sofrimento com o sistema”, como escrevera Jean-Louis Perrier na revista Mouvement, era uma porta de entrada surpreendente para uma realidade tão amarga quanto aquela que, na Europa de então, ainda se estava longe de adivinhar. Five Days in March tratava da vida dos jovens adultos japoneses de Yokohama, grande cidade industrial na cintura de Tóquio, durante os dias que mediaram o anúncio da invasão do Afeganistão e a entrada das tropas naquele território do então “Eixo do Mal”. A guerra como pano de fundo mas a guerra, sobretudo, como cenário — Okada recusava a ficcionalização do discurso político e público. Não percebia a apatia. Queria questionar a normalidade com que tudo parecia passar-se, como se uma guerra, um terramoto, uma ruptura amorosa não fossem mais do que lombas numa estrada. “Há algo de mais teatral do que a normalidade?”, perguntava três anos depois, quando chegou a Lisboa e apresentou no Teatro Nacional Dona Maria II, também como parte do Alkantara Festival, Hot Pepper, Air Conditioner and the Farewell Speech, de novo um grito contra corpos inclinados, adormecidos, interessados apenas na sobrevivência.

Tantos anos depois, um acidente nuclear e um terramoto passados, os mesmos corpos (são os mesmos actores) dos mesmos jovens (mesmo que mais envelhecidos) podem continuar no seu torpor, sem desejo de serem acordados. Mas o olhar de Toshiki Okada abandonou o registo (poética e metaforicamente) documental para se lançar numa desmontagem ácida dos resultados dessa aporia que uns chamavam de sobrevivência. Super Premium Soft Double Vanilla Rich, que se estreou no fim-de-semana passado em Mannheim, na Alemanha, inventa um microcosmos particular, artificial e higienizado, para onde Okada atira as suas personagens para aí as confrontar com as suas neuroses. Explica o encenador que o cenário recria uma loja de conveniência onde, “à agradável temperatura ambiente deste paraíso brilhante e limpo, se lançam-se produtos novos todas as segundas e terças-feiras” — e onde “os empregados em part-time, o gerente e os clientes insuportáveis dão mostras de cansaço, raiva e desespero crescentes, no seio de uma sociedade cujo futuro parece cada vez mais sombrio”.

O título, imaginando um sabor de gelado tão genérico que deveria satisfazer todos os gostos, não aguenta o calor da realidade e derrete todas as metáforas de felicidade possível. A falha começa assim, na recusa de entregar o corpo a um estado de espírito imaginado por uma entidade exterior. “Durante os ensaios pedi aos actores que criassem movimentos a partir de imagens que pudessem relacionar o corpo com a música.” Justamente, a música é uma armadilha porque induz a um compasso que tanto limita que provoca uma reacção. “Usei uma estrutura básica a partir das 48 partes de O Cravo Bem Temperado, de Bach. Escrevi 48 cenas, cada uma delas inspirada pela música. À medida que os ensaios foram decorrendo, e os actores foram ganhando o seu espaço dentro de cada cena, os textos foram-se adaptando até à rarefacção.”

Neurose

Toshiki Okada gosta que os textos vão desaparecendo no interior dos corpos — não como se as palavras se tornassem movimento, mas dando às palavras um peso e uma presença que as tornam concretas. E, por isso mesmo, pessoais. Ou identificáveis, porque passam a ter um rosto. As frases tendem a ser cortadas ou bruscamente interrompidas, o que cria um estado de alerta, uma neurose no discurso que em tudo se relaciona com a ansiedade perante a indefinição do presente. Mas o encenador acrescenta que não nos devemos deixar enganar por essa neurose, julgando-a marginal à realidade quotidiana. “Há um naturalismo nas interpretações que decorre do facto de as conversas e os encontros entre as pessoas serem de facto assim. Nervosos, interrompidos, bruscos.” Não se trata de colocar a ficção a interpretar a realidade como se lhe fosse alheia. Trata-se de transformar a ficção em realidade. “As nossas conversas quotidianas são banais. E surgem de situações banais. Mas isso significa o quê? Que significado atribuir a essas conversas se parecem todas iguais? Estou interessado em criar em palco um reflexo da realidade, mas a ansiedade que os espectadores sentem já existe neles, não é criada pelo que se passa em palco.”

Olhamos para o palco e queremos saber porquê. Mas ele pede que olhemos antes para nós mesmos. “Gosto de pensar que os meus trabalhos não oferecem significados óbvios nem imediatos. Não recuso a existência de significados, mas não os sujeito à liberdade de interpretação que, essa sim, sustenta cada um dos meus espectáculos.”

Okada fala de efeitos secundários e não tanto de espelhos. Fala de aproximação e não de identificação. Fala, afinal, de um desejo de manipulação que pede uma reacção. 

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