Efusões não comuns

Uma antologia de referência que documenta um caso notável da literatura inglesa: as irmãs Brontë

Por volta de 1834, Branwell Brontë pintava um quadro em que surgia rodeado das irmãs: Anne, Emily e Charlotte. Mais tarde, insatisfeito com o auto-retrato, ocultou a sua figura pintando sobre ela um pilar — razão pela qual aquele é por vezes chamado Retrato do Pilar. O destino do quadro viria a conferir-lhe uma qualidade quase profética e simbólica do destino das Brontë. Escondido e esquecido durante anos, primeiro pela rudeza da sua composição (foi um dos primeiros trabalhos de Branwell), depois devido à tacanhez das intrigas familiares, só muito mais tarde ganhou a fama de que hoje goza. É a imagem que ilustra a capa de Poemas Escolhidos das Irmãs Brontë, que Ana Maria Chaves traduziu, de forma magistral, para a Relógio D’Água: cerca de meia centena de poemas distribuídos pela produção de Charlotte — “As horas mais felizes (…)/ Passei-as nos brejos, antes de a mocidade/ Declinar em negra ânsia” (p. 23) —, Emily — “protegei-me dessa luz hostil/ Que vem, não para aquecer, mas para queimar” (p. 59) — e Anne — “Cada ano traz-me novos sentimentos/ E os anos velozes avançarão” (p. 161). Com eles, a tradutora, pela sua fidelidade, e graças ao poder do seu engenho, criou uma antologia de referência, merecedora de destaque, em que ressalta a sua capacidade de reproduzir e reinventar rimas e sonoridades, recursos retóricos e traços próprios do estilo.

Carlotte Brontë tinha em pouquíssima conta aquele retrato de grupo, e chegou mesmo a lamentar que nem ela nem as suas irmãs tivessem qualquer quadro que as representasse fielmente. Foi essa a impressão que transmitiu a Elizabeth Gaskell. O que é o mesmo que dizer: à posteridade, porque The Life of Carlotte Brontë, de Mrs. Gaskell, foi, durante longos anos (e, ainda hoje é, de certa forma), a biografia por excelência. O facto de apenas as irmãs terem permanecido representadas no retrato pintado por Branwell parece vaticinar o destino do único rapaz Brontë, um talento promissor nunca materializado, consumido no álcool e no ópio que o levaram à morte com 31 anos. Na verdade, a sua produção (pintura e desenho, tradução, poemas, ensaios) não é negligenciável — Coleridge encorajou-o mesmo a prosseguir (embora, tipicamente, se tenha esquecido de consolidar esse estímulo). O facto é que, na sua breve vida, as irmãs Brontë, contrariamente a Branwell, arrecadaram uma segura fama póstuma: Emily (morta aos 30 anos), Anne (que seguiu a irmã, com apenas 29) e Charlotte (cujo desaparecimento antes de completar 39 anos apenas prolongou, numa existência resignadamente burguesa, uma vida, também ela, demasiado curta) tornar-se-iam um caso notável da literatura inglesa.

Das três irmãs, Charlotte viria a ser a mais obstinadamente profissional, a que, de forma mais sistemática, procurou solidificar o seu percurso autoral — e o das suas irmãs, mesmo contra a sua vontade — no exclusivista universo das letras britânicas de meados do século XIX, claramente hostil a presenças femininas. Reveladores disso mesmo são os nomes com que primeiro assinaram as suas obras — Acton, Currer e Ellis Bell, que mantinham as iniciais das autoras, jogando com uma certa ambiguidade de género —, até que a ganância de um editor as obrigou a desfazer a pseudonímia. Já em 1836, com apenas 20 anos, Charlotte enviava a Robert Southey (então Poeta Laureado) alguns dos seus poemas, deixando clara a intenção de vir a ganhar a vida como poeta, algo que apenas se concretizou após os anos de “escravatura” (palavras suas) como preceptora (destino comum às três irmãs) e aluna-preceptora, uma espécie de estagiária em exercício (experiência que lhe deu material para a escrita de Villette), e dezenas de recusas de editores de vistas estreitíssimas. A aclamação chegaria, contudo, com os romances — sobretudo Jane Eyre —, e menos pela poesia. Sobretudo quando esta é comparada à da sua irmã Emily, o elemento mais forte, e o verdadeiro génio, do clã. Segundo uma história que faz parte do anedotário familiar, e dos estudos literários, os poemas de Emily foram encontrados por mero acaso doméstico pela sua irmã Charlotte. Espírito avesso a normas e convenções, Emily (no que se aproxima de outra Emily, Dickinson, e em mais do que um aspecto a comparação valeria) resistiria firmemente à noção de se dar a ler e, mais ainda, de publicar. Estavam reunidas as condições para a edição de Poems by Currer, Ellis, and Acton Bell (os poemas da irmã mais nova, Anne, surgiriam na sequência daquela descoberta acidental). Só se venderiam dois exemplares do livro (uma segunda edição viria a alcançar números mais expressivos), mas, sobretudo pela poesia de Emily Brontë — “Sabem porém meus tiranos que não estou predestinada/ A definhar entre sombras ano a ano, desesperada” (p. 81) —, revelava-se naquelas páginas uma das forças poéticas mais intensamente pessoais da literatura inglesa. E, em plena época vitoriana, três poesias de assinalável qualidade — ainda que desigual, em ordem de grandeza —, distintas de muita placidez adamada que então imperava. A fortuna crítica das irmãs foi, no entanto, acidentada, com reapreciações e desvios permanentes que só estabilizaram no século passado; mas que deixaram cristalizar uma imagem — no mínimo, enganadora — de um talento sobretudo romanesco e apenas episodicamente poético.

Pense-se, por exemplo, que o universo de um poema como Monólogo do Professor, de Charlotte Brontë — “Só as ideias na sala silenciada/ Povoam a muda tranquilidade;/ Aliviado o jugo, a tarefa terminada” (p. 23) —, comunicam, quer a nível temático, quer até lexical, com romances como Villette (“Guiado por um toque, e governada por uma palavra, em circunstâncias normais, nenhum jugo se poderia suportar — nenhum limite a que se obedeça”), ou o póstumo The Professor. Também na poesia de Emily — “Tua esperança ardente enfrentará trovoada/ Vendavais, mar indomável” (p. 55) — podem detectar-se vasos comunicantes com o seu genial O Monte dos Vendavais. Assim como “o porfiado labor e ansiedade” (p. 171), do poema A Campainha, de Anne Brontë, poderá, facilmente, remeter para o que a autora chamava, em prefácio ao seu The Tenant of Wildfell Hall, a “dolorosa verdade” por si procurada. Razão suficiente para não desprezar a prosa em detrimento do verso, ou vice-versa. O que não invalida a notória superioridade dos poemas de Emily, que já Charlotte considerara “condensados e tersos, vigorosos e genuínos”, por oposição ao “doce pathos sincero” de Anne. A postura poética das composições de Emily é muito mais contida do que a dos seus predecessores românticos. E mesmo quando a autora revisita os lugares e os processos do romantismo — a natureza em tropel, a liturgia do genuíno, a descrença na civilização —, fá-lo de uma maneira já nova. Profundamente desconfiada de excessos expressivos, altiva e desafectada nas realizações da sua arte, obliquamente reflexiva nos seus versos, a sua poesia é uma das precursoras da modernidade.

 

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