África nossa

Uma leitura ingénua da exploração portuguesa do continente

Este livro trata de sete exploradores portugueses ao interior de Angola e Moçambique, na segunda metade do século XIX. Conforme confessam os seus autores, no início e na conclusão, moveu-os “uma curiosidade adolescente” por tais “aventuras”. Daí que tenham entendido dedicar o seu trabalho a um público de não especialistas. A pulsão adolescente pelas viagens de descoberta — dignas de um romance realista, mas pejado de episódios misteriosos ou exóticos — poderá ser um sentimento sincero. Porém, não posso deixar de acrescentar que todos esses ingredientes — da escrita de divulgação ao romance de aventuras — não permitem aos autores do Exploradores Portugueses e Reis Africanos apetrecharem-se com os devidos instrumentos para fazer a história das “viagens ao coração de África no século XIX”.

Na primeira parte do livro, referem-se algumas ideias gerais relativas às viagens e aos contactos com os reis africanos. Um dos capítulos, em particular, introduz o leitor num ambiente considerado exótico: Poder divino, violência e sacrifícios humanos: as realezas africanas pré-coloniais. Mas não haverá aqui um erro de perspectiva? É que, ao lado das dramatizações do poder cortesão dos africanos e dos conflitos sucessórios incluídos nos relatos, o que neles mais sobressai é o modo como os poderes africanos se mostravam atentos à gestão dos seus próprios interesses, ou seja, aos negócios e ao comércio.

Segundo os autores, “a importância dos sertanejos e ambaquistas para as expedições científicas das últimas décadas do século XIX raramente transparece nos livros que os exploradores deixaram”. Basear-se-á esta constatação no livro de David Livingstone, Missionary Travels and Researches in South Africa (Londres: John Murray, 1857), onde um sertanejo como Silva Porto é referido, sem ser nomeado. Ora, Maria Emília Madeira Santos, especialista da história dos viajantes em Angola, chegou à conclusão diametralmente oposta, baseada nos trabalhos de Livingstone, Buchner e Henrique de Carvalho: “Relativamente à segunda metade do século XIX, os documentos confirmam a presença mais ou menos permanente dos ambaquistas em numerosos sobados entre o Cuango, o Lulua e o Zambeze superior — para não falar nos territórios a ocidente do Cuango e de Quimbundo.”

Os autores do livro dedicam três capítulos a Gamito, Rodrigues Graça e Silva Porto, mas pouco esclarecem o leitor acerca do lugar dos sertanejos no trabalho de acumulação de conhecimento sobre o interior de África. Nada existe, por exemplo, sobre as relações de colaboração entre eles e cientistas como Frederico Welwitsch ou os militares e administradores. Ora, conforme uma investigação importante, mas não citada pelos autores, em 1850 Silva Porto fazia parte de um grupo de 38 sertanejos do Bié que imploraram justiça ao governador-geral de Angola contra as opressões e vexames que lhes infligiam o soba e o povo do Bié. E o mesmo grupo ofereceu-se não só para construir fortalezas, pagar impostos e cumprir as leis, mas também para pagar uma força armada, a que eles próprios se juntariam, para impor a sua própria ordem colonial.

Julgam também os autores que, nos relatos dos exploradores por eles analisados, existia “uma presunção infundada de superioridade cultural, um mero, embora profundo, preconceito etnocêntrico alicerçado em utilizações impróprias das teorias do evolucionismo social e biológico e que em última análise serviam, como a história do continente foi mostrando, de véu legitimador de interesses de dominação política e exploração económica”. Neste sentido, um dos melhores exemplos encontrar-se-ia no relato de Capelo e Ivens, quando, depois de caracterizarem fisicamente “o negro típico”, ambos concluem que “a capacidade do crânio acha-se reduzida quando comparada com a do europeu, sobretudo na região anterior”. Darwinismo social, antropologia física e racismo constituem, sem dúvida, elementos importantes no modo de percepção europeia dos africanos. Como sustentou há décadas e com originalidade o historiador Valentim Alexandre, o racismo de Oliveira Martins — apesar de silenciado pelos seus comentadores — incluía tais dimensões. No entanto, será hoje difícil argumentar que uma tal percepção, mesmo que possa ser considerada dominante, não encontrou resistências e matizes. Por exemplo, António Francisco Nogueira, sertanejo e bom conhecedor do interior de Moçâmedes, mostrou-se muito crítico da famigerada superioridade dos europeus, quando defendeu que “as palavras tráfico e escravidão depõem ainda hoje muito contra os brancos”. O conjunto de atitudes e percepções dos europeus em relação aos africanos não se limitava a um olhar científico, centrado na questão da formação de disciplinas tais como a antropologia física e a etnografia. Provavelmente mais difusa era uma atitude europeia de recusa de qualquer especulação teórica, sobretudo entre aqueles que estiveram envolvidos nas formas mesmo embrionárias de um Estado colonial. Paiva Couceiro — cuja presença em África se traduziu num cursus honorum de reputado sucesso e que era um bom conhecedor das técnicas de aterrorização das populações, por ele denominadas “policiamentos volantes”, pois implicavam a “mobilidade das autoridades” — considerava que os africanos assimilavam melhor o tratamento enérgico, imposto pela força, do que as medidas benéficas .

Qualquer história dos exploradores de África na segunda metade do século XIX não pode ignorar, nessas “aventuras”, a importância dos guias e carregadores africanos, nem pôr de parte a hipótese de que algumas das suas descobertas geográficas foram uma mera confirmação de informações disponíveis anteriormente. Se o livro em apreço inclui várias referências ao trabalho dos carregadores nas suas relações com os exploradores, em nenhum lugar se fala de uma mudança de perspectiva da análise histórica determinada pela interacção intensa com esse tipo de agentes. Pelo menos dois grandes historiadores de África, Alfredo Margarido e Beatrix Heintze, operaram uma mudança de paradigma — menos eurocêntrica, logo mais atenta ao trabalho dos agentes africanos — precisamente quando começaram a insistir na centralidade do papel desses carregadores.

A segunda parte do livro é aquela em que melhor se reproduz a lógica das próprias narrativas dos exploradores. Através de resumos dos relatos ou adoptando o estilo de antologia dos discursos dos protagonistas destas aventuras, os autores parecem querer recuperar o ponto de vista dos exploradores e o seu sentido de descoberta do interior de África. Neste propósito intencional, os autores são fiéis às lições da antropologia social e cultural quando definem a cultura como uma reconstituição do ponto de vista dos actores e do sentido que encontram para as suas acções. Porém, para uma análise histórica, interpretações que se limitam a reproduzir o ponto de vista dos actores, além de incompletas, correm o risco de se reduzirem a uma mera repetição dos discursos da época e a uma reificação das categorias em estudo aparentemente instituídas em conceitos operatórios. Mais concretamente, o risco que a segunda parte do livro comporta é o de prescindir da análise do objecto que escolheu — as acções e os discursos dos exploradores — para alimentar a ideia inocente (melhor seria recorrer ao vocabulário dos autores e dizer “adolescente”) da descoberta. Trata-se, aliás, da repetição de um dos mitos mais enraizados da história da expansão europeia nas suas configurações imperiais e coloniais: o de considerar que existe uma grande narrativa histórica composta por três fases, a dos descobrimentos, a que se segue um período de ocupação, para depois culminar, finalmente, com a emancipação das colónias.

Poderá sempre argumentar-se que os exploradores da segunda metade do século XIX procuraram mimetizar os descobridores anteriores, os dos caminhos marítimos e dos continentes tomados como espaços em branco que poderiam ser apreendidos cartograficamente e através de sucessivas operações de observação. Porém, tal como os seus antepassados, os exploradores oitocentistas cedo constataram que a sua sobrevivência e o seu sucesso dependiam menos de um sistema de conhecimento universal do que do conhecimento local acumulado pelas populações nativas.

É, pois, difícil aceitar a narrativa, supostamente triunfal, da expansão imperial e do processo de colonização composta pela tríade descobrimento-ocupação-emancipação. É que desde o início de um processo que dificilmente pode ser definido como sendo da ordem do descobrimento ou da ocupação são visíveis os interesses emancipatórios. Por isso, talvez valha a pena pôr de lado, pura e simplesmente, as histórias de viagens e da exploração de África organizadas em função da ideia de descobrimento e de um desejo de busca de aventuras. 

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