Mão Morta, mão morta, vai bater àquela porta

A violência é admissível em democracia: o Estado pode exercer violência (quando há motins, p. explo., embora em Portugal baste uma fotojornalista fazer o seu trabalho para levar com um cassetete), e alguns estados democráticos têm pena de morte. Do mesmo modo, o indivíduo atacado pode retorquir com violência

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Não me perguntam nada e depois é isto: um barulho enorme por uma situação – tão patética que até se me doem os dedos de teclar – que se resume a: será que o vídeo dos Mão Morta é um incitamento à violência? Como seria de esperar, a questão foi resolvida por um grande amigo meu, Alexandre Homem Cristo, neste texto.

Na verdade, Homem Cristo nunca teve o prazer de me conhecer, mas como pensa bem a isso será obrigado. Cristo diz o óbvio: os Mão Morta andam há muito a explorar a violência e as franjas da sociedade e já foram mais longe que isto. É divertido que, trinta anos depois do começo da banda, o país os descubra, mas incomoda-me que um cronista de excepção como Ferreira Fernandes junte os Mão Morta e Manuel Palito no mesmo texto, chamando a ambos “sonsos”, como se fossem uma e a mesma coisa.

Vejam o vídeo de Stress, dos Justice, em que um gang dos subúrbios espalha o terror; ou o de Lemon Incest, de Serge Gainsbourg (é a filha dele que lá surge); ou o de Born Free, de M.I.A., em que um bando de miúdos ruivos é perseguido e executado. À beira destes, o dos Mão Morta – que tem Luxúria Canibal a dar uns (caricatos, tão maus são os efeitos especiais) tiros em desconhecidos, enquanto em fundo vão passando imagens dos nossos (ex-)governantes – é um passeio na Kidzania. (Já agora aproveito para fazer notar que Don't stop me now, usada na campanha da NOS, versa sobre pederastia, sodomia, ejaculação e uppers.Daddy Cool, usada num anúncio da Popota, é sobre chulos e prostitutas.) No texto de Homem Cristo é citada a opinião do meu amigo Mexia: segundo o Pedro, "não se pode dizer que [o vídeo] apela à violência porque isso seria tornar literal o discurso da arte”. Porém, "do ponto de vista político ou ideológico", o vídeo "é lamentável". Querido Pedro, cito Leonard Cohen, que tanto admiras: "Give me absolute control/ over every living soul/ (...) Give me back the Berlin wall/ give me Stalin and St Paul". Estamos de acordo que não podemos tornar literal o discurso desta letra, e estamos de acordo que, “do ponto de vista político ou ideológico", o que Cohen aqui defende, "é lamentável”, certo? O Pedro acrescenta depois que "não se pode aceitar a defesa da violência em democracia”. Esta sim, poderia ser uma discussão interessante.

A violência é admissível em democracia: o Estado pode exercer violência (quando há motins, p. explo., embora em Portugal baste uma fotojornalista fazer o seu trabalho para levar com um cassetete), e alguns estados democráticos têm pena de morte. Do mesmo modo, o indivíduo atacado pode retorquir com violência. Há outros tipos de violência e a menos que sejamos meninos burgueses que nunca se deram ao trabalho de conhecer o país e o povo, não é difícil admitir que certas democracias conseguem, com um par de leis, exercer violência sobre as suas gentes: destruir o Estado-Social desprotegendo ao extremo os cidadãos é, indirectamente, violência física.

Deixo-te, querido Pedro, com uma frase de Jean-Marc Daniel, economista francês que já desempenhou todo o tipo de papéis no Estado francês, uma frase acerca do momento em que os Estados se tornaram modernos e os impostos foram institucionalizados: "É preciso (...) que o modo de obtenção [dos impostos] permita ao Estado receber aquilo de que (...) necessita SEM PROVOCAR UMA REVOLTA". As maiúsculas são minhas. Servem para sinalizar que quando se exerce violência indirecta sobre os cidadãos, estes não têm outra solução senão pegar na sua mão quase morta e ir bater àquela porta.

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